padre Luiz. Ruas, c1956 |
Todavia, em homenagem aos oitentanos do falecido, vou aqui inserir este conto, que foi publicado há quarenta anos, em O Jornal, (3 janeiro). A propósito, o cigarro foi um vício que o padre-poeta conservou até o final da vida.
Outro detalhe: o texto foi aqui publicado como se apresenta no original, escrito todo em letras minúsculas.
O CIGARRO
a noite me esmagava contra o fundo da rede. como um infinito molusco, pegajoso e nojento, um polvo talvez, um sapo, um cogumelo. negro. informe, impalpável, sem dimensões. ilimitado com a própria noite sem fim e sem aurora. sem mais nada. noite. pela janela aberta e estática o latir dos cães atormentavam meus olhos secos e ardidos como dois poços velhos. olhos cansados de estrela e de mundo. olhos cansados simplesmente. estrelas moribundas e histéricas como vagabundas noturnas. que céu estúpido. eu prefiro o céu de aristóteles. as esferas de cristais. não de cristal. que besteira. um céu de cristal é tão besta como essas rosas apagadas que eu não consigo ver. rosas apagadas. não quero ver rosas apagadas.
empurrei a parede com o pé. a rede rangeu. cão latiu. rosa morreu. enfiei a cara no fundo da rede. a noite cresceu como o ventre intumescido de uma grávida mulher. apertei bem as pálpebras. senti a cabeça rodopiar. um poço negro e fundo muito fundo se abria diante de mim: sem vozes, mas senti que estava sendo chamado para o fundo do poço como uma promessa de felicidade. eu devia me lançar no poço. encolhi as pernas. como fosse dar um salto de um trampolim. estou pensando ou estou sonhando? senti-me sufocado.
virei-me rapidamente. de peito para cima. mas em cima estava a noite. sucubo. incubo. acho que vou chorar. acho que o quarto vai cair em cima de mim. parece que já caiu. está me amassando. estou sendo estrangulado. asfixiado. será o quarto ou o cogumelo. acho que vou morrer. esta noite acaba ou não acaba? o céu de estrelas e de esferas de cristal. céu de mundos estéreis e apagados e ressequidos pelo fogo. o fogo. sinto vontade de gritar.
se ao menos as estrelas fossem de fogo a noite não seria tão estúpida. porque o fogo é a alma das coisas. alma do mundo a alma. a alma. a alma. tolice de fogo alma do mundo. mas o fogo é belo, simples e múltiplo. as línguas de fogo. as labaredas como serpentes. todo mundo já disse isso. a noite comia tudo. só não comia as horas. era uma luta de igual para igual. imponderável luta, mas violenta e cruel. a noite contra as horas.
fiz em mim mesmo um grande silêncio para ouvir o ruído da luta da noite contra o tempo. a noite – o cogumelo infinito. as horas – milhares de micróbios escorregadios lisos imperceptíveis. era uma luta leal. ouvia a luta dentro de mim, era em mim que a noite e o tempo se defrontavam. não sei bem se em mim ou contra mim. era como se eu estivesse me derretendo. uma lassidão fastidiosa se apossara de mim. onde é o fim da noite? o fim da noite. o fim da luta. o meu.
não era possível mais continuar acordado. mas eu sabia que continuaria acordado. que meus olhos não se fechariam. que o molusco continuaria enfiando suas garras nos meus olhos e arreganhando minhas pálpebras. pensei em sair, sair para onde? não havia saída.
eu estava definitivamente encerrado entre as quatro paredes do quarto. a minha noite é a minha morte. o retrato na parede me olhava. eu sabia que ele me olhava. eu sabia. não via mas sabia. um retrato velho e idiota. carcomido e embaçado. roído pelas traças. a moldura estava cheia de eczemas. o retrato me olhava. desviei o olhar. fiz uma viagem para fugir do retrato e dos meus olhos abertos pela parede nua e extinta. não há paredes na realidade. o que há é a noite. e a estrelas moribundas.
sentei-me na rede. meus pés pisaram no rabo felpudo do cachorro. o cachorro existe. as minhas rosas apagadas também existem. angústia. calor. silencio. nem os cães latiam. as estrelas desapareceram. a janela estaticamente fixa no nada. o meu corpo todo me incomodava. seria melhor se as pernas estivessem no lugar dos olhos. os braços no lugar da boca. ah, a boca. a boca na boca. você gosta? demais. deixe de tolice.
é melhor você fumar agora. fumar? sim. fumar. há algum mal em fumar? não. é. vou fumar. levantei-me. vou ver se descubro um cigarro, sai tateando. um cigarro me aliviaria muito, um cigarro seria uma solução para aquela inquietude. um cigarro. boa ideia. porque veria alguma coisa viva. uma brasa é uma coisa viva. um fogo. o cigarro. por que eu não lembrara disso antes? por que? as estrelas apareceram novamente na moldura estática. estavam com outro semblante.
eu poderia me aproximar das minhas rosas apagadas, tragar bem perto delas. ver a luz vermelha do cigarro suas cores. eu poderia ressuscitar minhas rosas apagadas. a janela já não tão estaticamente parada. um pirilampo acendeu-e-apagou. acendeu-e-apagou. a luz do pirilampo. daqui a pouco eu terei um pirilampo. não verde. vermelho.
saí tateando. não adiantava acender a luz. não havia. mas o meu cigarro venceria a noite e venceria as horas. agora eu sentia mais unidade em mim. não havia mais lassidão. apalpei a mesa. um livro. deve ser kierkegaard. o salvo. derrubei alguma coisa. não faz mal amanhã eu apanho. quando será amanhã? amanhã? pode ser agora mesmo se eu achar o cigarro. amanhã é eu estar sossegado e não sentir mais o peso da noite me esmagando.
continuei apalpando em cima da mesa. estou desorientado. a mesa era um campo imenso no escuro. de dia era um aperreio. não havia lugar para nada. nem para um livro aberto. à noite no escuro os espaços se dilatavam. tomavam proporções desmedidas. mas o cigarro devia estar por ali. estou como alguém perdido no deserto atrás de um poço. o poço é o cigarro.
devo continuar caminhando. tudo se colocava entre mim e cigarro. livros. livros. cadernos. livros. uma régua. livros. tinteiros, vocabullaire de philosophie. caderno.
isqueiro.
isqueiro.
espaço.
deserto.
cigarro.
tomei a carteira nas mãos. delicadamente. devo estar rindo. apalpei. amassei toda a carteira de todos os modos. comprimi-a entre os dedos. enfiei os dedos na boca. rasguei-a.
não havia cigarro.
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