Luiz Ruas, homenageado pelo colégio Batista das Américas |
Quando, em 1956, o Brasil comemorou o cinquentenário dessa conquista, aqui em Manaus, o padre-poeta Luiz Ruas emocionou seus leitores com o texto que reproduzo, publicado em A Crítica (22 out. 1956).
Bagatelle
AMANHÃ é
o dia 23 de outubro. Uma data que, por sua incalculável repercussão na história
da humanidade com toda a seriedade possível, com toda a seriedade que é capaz
de comportar o fato por ela evocado: o início da aviação. Bagatelle será, para
sempre, apesar das inúteis tentativas de usurpação do direito de propriedade, o
foco, a estaca nº 1, de um dos principais fatores que vêem construindo o mundo
moderno. Podemos, pois, dizer, sem medo de exagero, que Alberto Santos Dumont
é, não só o “Pai da Aviação”, mas é também um dos genitores da idade moderna e,
talvez, um dos maiores.
Sua
figura ressalta das brumas do passado como se fora uma estrela ou um cometa,
traçando para os homens, nos espaços abertos os roteiros para o Natal de uma
idade nova. Céus e terra, foram os presentes que este brasileiro, no alvorecer
do século XX, ofertou à humanidade. Porque, por paradoxal que pareça, a aviação
tem como efeito principal descobrir o mundo, pelos caminhos aéreos. Que outros
objetivos, senão a terra e os homens, seriam os de Santos Dumont?
É sabido
que o inventor brasileiro “nunca tirou patente de qualquer de suas descobertas
(por considerá-las de importância capital para o progresso da civilização),
entregando-as ao domínio público”.
A tentação da conquista do espaço parece que é congênita ao homem. Creio mesmo que uma história do mundo poderia ser escrita em torno deste fato. O homem da caverna já pensava nisso e a fábula grega de Dédalo e Icaro derretendo suas asas de cera ao calor do sol é, sem dúvida, uma página de rara beleza, iniciando-se com ela a resenha dos mártires que tentaram se desprender da terra e percorrer os itinerários do céu.
O gênio humanista de Leonardo da Vinci, a figura quase mítica do Padre Voador, outro mártir da aviação, mártir não de desastres, mas da ignorância, das supertições, do atraso da corte portuguesa; os Montgaltier, Pilatro de Rozier a primeira vítima da navegação aérea justamente quando tentava a travessia da Mancha no dia 15 de junho de 1785, todos esses foram os grandes precursores da aviação nos séculos XVII e XVIII.
O século XX iria resolver o problema da dirigibilidade dos balões, solução oferecida ao mundo por Alberto Santos Dumont, no dia 12 de julho de 1901, com o “Santos Dumont nº 6”, com o qual conquistou o prêmio Deutsch, contornando a torre Eiffel no dia 12 de outubro do mesmo ano, Santos Dumont distribuiu o prêmio entre seus operários e pessoas necessitadas.
Dois problemas, porém, persistiam, desafiando a argúcia dos pesquisadores, e que resolvidos, transformariam a navegação aérea de mero sonho numa fantástica realidade. O primeiro consistia na adaptação de um motor facilmente transportável que imprimisse velocidade suficiente ao aparelho para mantê-lo no ar e o segundo em dotar o aparelho de um mecanismo que fosse capaz de o dirigir. Um leme.
Foi esta, precisamente, a página luminosa de Bagatelle. No dia 23 de outubro de 1906, Santos Dumont, no seu “14 Bis”, consegue elevar-se a 80 cm do solo, voando 100m, conquistando a taça Archdeacon e antecipando-se a outros pesquisadores que tentavam também a solução, em muitas partes do mundo.
Bagatelle é a cidade-mãe das glórias irretorquíveis da aviação. Depois das experiências finais realizadas por Santos Dumont, depois do aparecimento de “Demoiselle” a humanidade estava de posse de um dos maiores tesouros dentre os que já lhe ofertou o esforço da inteligência. Será demais dizer que a história do mundo neste século, tem sido escrita à sombra das asas dos aviões? A literatura, a economia, a política, a religião, devedores todos do Pai da Aviação, deviam rodear, no dia de hoje, o mausoléu de Alberto Santos Dumont e aí depositar, não orações arrebatadas ou coroas de flores inúteis, mas o juramento sincero de utilizar o seu invento ou os seus inventos para o fim que ele tinha em mente: o bem da humanidade, o progresso da civilização.
Bagatelle deve, especialmente, ser gravada no coração e na inteligência dos nossos jovens. Não, porém, uma Bagatelle parcial, não somente a Bagatelle do aprimoramento da técnica ou a Bagatelle dos arroubos inúteis de certo patriotismo estouvado. Mas a Bagatelle integra.
Aquela que nos oferece a imagem total do verdadeiro trabalho humano. Aquela que nos dá o esforço do sábio, a generosidade do homem, a humildade do talento, o exemplo palpitante dos que trabalham movidos unicamente pelo bem do gênero humano.
Nesses dias em que vivemos atolados e afogados num mar de ódios, de ambições, de intrigas, de completa carência de desprendimento por parte daqueles que deviam ter olhos para ver somente o bem das comunidades e que, infelizmente, só vêem a si mesmos.
Nesses dias em que a honra, a fibra, o caráter, o brio, a vergonha levaram sumiço, nesses dias de ambições políticas e econômicas, de fraudes, de roubos e crimes inomináveis, Bagatelle deve ser reconstruída, Bagatelle deve ser focalizada com todas as luzes possíveis e, antes de tudo, com as luzes que jorram de dentro dela, Bagatelle vale por si mesma.
É uma autentica lição de patriotismo, de generosidade, de amor à ciência, ao estudo sério, de amor à humanidade. Lição que continua viva naquilo que a aviação possui de mais vivo. Lição que cintila em páginas humanas, palpitantes e ternas como as de um Saint Exupéry.
Lição que se prolonga nas jornadas heróicas do nosso Correio Aéreo Nacional, que rasga os céus do Brasil, devassa os nossos sertões brutos e vão, à custa de riscos indizíveis, construindo a unidade nacional, levando aos lugares mais esquecidos, aos rincões mais longínquos, um pouco de civilização, um pouco de brasilidade, de comunhão humana, desbravando, alargando, conquistando, continuando o trabalho dos descobridores lusos e dos imortais bandeirantes.
Amanhã quando, no Campo dos Afonsos, na Capital da República, a reprodução do “14 Bis” cortar os céus brasileiros, no 50º aniversário do vôo de Bagatelle, praza a Deus, que a lição de Alberto Santos Dumont, brilhe para o mundo como um anseio de confraternização e para o Brasil, sua dilacerada pátria, sua e nossa, como um estímulo de recuperação, pelo menos para os que apesar de todas as traições e decepções, ainda se sentem com coragem, pelo menos, de lutar, para que o Brasil se oriente, livre, para os destinos altaneiros que lhe sonharam os seus filhos imortais.
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