CATANDO PAPÉIS & CONTANDO HISTÓRIAS

segunda-feira, janeiro 06, 2020

ADRINO ARAGÃO: CONTO

Adrino Aragão

Adrino Aragão de Freitas, nascido em Manaus (1936), é um escritor com diversas publicações. Contista por devoção, no curso de sua vida literária, e desde quando integrou o Clube da Madrugada. Adiante, ao lado do mineiro Elias José, passou a cultuar o miniconto. Além das publicações, encontram-se contos em jornais do País.
Foi assim que, catando em jornais de Manaus circulados há 50 anos, encontrei o conto “Angústia” de Adrino, publicado no Jornal do Commercio (edição de 4 janeiro 1970), que abrigava a coluna dominical da UBE seção do Amazonas, intitulada “Coluna de Literatura”.  
 
Jornal do Commercio, 4 janeiro 1970

Nunca me aconteceu antes. Sou um homem metódico, controlado, lúcido. Sempre sei o que faço e por que faço. No entanto, não posso compreender como aconteceu. Nem mesmo sei o que me está acontecendo. Onde estou e por que aqui me encontro, quem foi que disse que sei? Apenas de uma coisa estou seguro: o quarto, a cama em que me acho deitado, o guarda-roupa, o quadro na parede, nada disso me pertence e posso jurar que nem sequer conheço de algum lugar, o que me põe mais confuso ainda. Se ao menos a cabeça parasse de doer, talvez as ideias fossem aclarando e eu pudesse chegar a um ponto de partida, conseguisse encontrar uma explicação para o caso. Já pensei gritar por alguém para que me venha atender. Mas quem devo chamar, se nem mesmo sei onde estou? Tentei levantar-me, mas o corpo, como pesando toneladas, permaneceu imóvel, preso à cama. Devo então me conformar e ficar esperando? Uma ova! ... Esperando por quem? Até quando? Por que não grito de uma vez por todas? Nestas circunstâncias, não importa saber a quem se deve chamar, bastando apenas gritar como num pedido de socorro. Grito. Com força, mais força ainda, toda força que me for possível. As veias tufam na garganta, mas a voz não sai, fica morrendo no peito sem passar pela boca. O que me aconteceu, não posso avaliar, por mais que me esforce, a cabeça zonza não deixa que eu pense. Terei perdido a voz ou estarei surdo? Mas como?! Uma dolorosa interrogação. Não devo e não quero admitir nem uma coisa nem outra. Tanto a surdez como a mudez são duas formas de o homem morrer, permanecendo vivo no meio de uma multidão que lhe passa a ser estranha ou para qual é intruso. E porque não devo admitir nenhuma das hipóteses, grito novamente até as forças se exaurirem. As veias do pescoço voltam a tufar, mas a voz se perde outra vez no peito sem que eu a ouça. Desfaço-me em suor. Sinto-me aniquilado, como se estivesse sendo esmagado por uma rocha. De nada me tem adiantado bufar. Só agora noto que estou de pijama. Aliás, não é de pijama que estou; é de roupão. Tudo — a começar do roupão que não é meu e nem sei de quem seja — me é inteiramente estranho, confuso. Se não encontro uma explicação ou se não aparece ninguém, sou capaz de acabar louco. Ou já não o estarei? Não, não posso estar louco: estivesse e saberia de alguma forma. Ou será que os loucos soo tão loucos assim que não chegam a ter consciência da doença mental que sofrem? Nem louco nem surdo estou: principio a ouvir os ruídos da cidade que vive lá fora. Que bom ouvir! Sinto-me como se despertasse de um pesadelo.
Desta vez é o repicar do sino que ouço. Deve haver alguma igreja por perto. Talvez agora eu possa ter uma ideia, ainda que vaga, de onde eu me encontro. Desisto: não me lembro de ter algum amigo ou pessoa da que more próximo a alguma igreja. Agora que estou convicto de que ouço, por que não grito, chamo por alguém? Primeiro devo tentar levantar-me. E se não o conseguir? Ora, deixa de ser covarde, homem! Que te impede de levantar-se? Viste, como foi fácil? Curioso, há poucos instantes, apesar de todo o meu esforço — cheguei a ensopar de suor o roupão — não consegui sequer mexer-me da cama. Agora que estou de pé, posso sondar o ambiente, estudar o aspecto do quarto para ter uma ideia de onde me encontro. Uma coisa afirmo: este é um quarto de gente grã-fina. Mas de quem, se não conheço ninguém assim? Seja lá quem for, admiro-lhe o esmerado gosto e a decoração primorosa do apartamento. Vi um abajur igualzinho a esse no magazine, deve custar uma fortuna. Ah! que perfume suave, menino. Esquisito tudo isso que me está acontecendo: só agora notei esse perfume e, no entanto, ele já existia antes, pois é no quarto precisamente na cama em que estive deitado onde mais o possa aspirar. Tenho a impressão de que até as paredes estão perfumadas. Algo me diz que isto aqui pertence ao sexo oposto, ao chamado sexo fraco. Intriga-me, todavia, quem seja esse alguém. Já que recuperei a audição — terei perdido-a mesmo? — e que vou recuperando a mim mesmo, por que não tento gritar, chamar alguém? Grito. A voz sai forte como um trovão, mas ninguém aparece e nem sequer responde. Porém, já é um grande alívio voltar a ouvir a própria voz. Posso dizer que me sinto como houvesse ressuscitado.
Vou agora recuperando a lucidez, as ideias vão se juntando como num quebra-cabeça; pedaço por pedaço, até se inteirar completamente. Lembro-me que ontem — teria sido mesmo ontem ou anteontem? — estive num aniversário ou coisa semelhante. De uma coisa não tenho dúvida devia ser de gente bem, porque a sociedade parecia estar em peso, esnobando. Até um conjunto musical, eu me lembro de ter visto tocando para quem quisesse dançar. Nunca tinha visto tanto luxo, tanta comida e bebida. Suponho haver bebido bastante e a dor de cabeça que, de todo, ainda não passou seja consequência da bebida. Senão, como explicar todo esse estado de coisa? Quem sabe, talvez tenha capotado: nunca fui homem de beber mais de uma cerveja, porém, devo ter me excedido. Mas por que fiz essa excessão? Agora tenho uma vaga lembrança de que havia alguém comigo lá no aniversário ou não-sei-o-quê. Quem seria? Homem ou mulher? Não consigo desvendar. O diacho da cabeça não quer mesmo ajudar, começa a ficar zonza e volta a embaralhar tudo novamente O jeito é gritar, chamar seja lá quem for que esteja nesta casa. Tento gritar: a voz cresce no peito, porém não passa pela garganta. O silêncio: os ouvidos, como anteriormente, não captam um ruído sequer. Terei perdido a audição? a voz? Volto ao estado anterior sem ter sabido o que me está acontecendo e muito menos o que me aconteceu.

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