Adrino Aragão |
Adrino Aragão de Freitas, nascido em Manaus (1936), é um
escritor com diversas publicações. Contista por devoção, no curso de sua vida
literária, e desde quando integrou o Clube da Madrugada. Adiante, ao lado do
mineiro Elias José, passou a cultuar o miniconto. Além das publicações, encontram-se
contos em jornais do País.
Foi assim que, catando em jornais de Manaus circulados há 50
anos, encontrei o conto “Angústia” de Adrino, publicado no Jornal do
Commercio (edição de 4 janeiro 1970), que abrigava a coluna dominical da
UBE seção do Amazonas, intitulada “Coluna de Literatura”.
Nunca me aconteceu antes. Sou um homem
metódico, controlado, lúcido. Sempre sei o que faço e por que faço. No entanto,
não posso compreender como aconteceu. Nem mesmo sei o que me está acontecendo. Onde
estou e por que aqui me encontro, quem foi que disse que sei? Apenas de uma
coisa estou seguro: o quarto, a cama em que me acho deitado, o guarda-roupa, o
quadro na parede, nada disso me pertence e posso jurar que nem sequer conheço
de algum lugar, o que me põe mais confuso ainda. Se ao menos a cabeça parasse
de doer, talvez as ideias fossem aclarando e eu pudesse chegar a um ponto de
partida, conseguisse encontrar uma explicação para o caso. Já pensei gritar por
alguém para que me venha atender. Mas quem devo chamar, se nem mesmo sei onde
estou? Tentei levantar-me, mas o corpo, como pesando toneladas, permaneceu
imóvel, preso à cama. Devo então me conformar e ficar esperando? Uma ova! ...
Esperando por quem? Até quando? Por que não grito de uma vez por todas? Nestas circunstâncias,
não importa saber a quem se deve chamar, bastando apenas gritar como num pedido
de socorro. Grito. Com força, mais força ainda, toda força que me for possível.
As veias tufam na garganta, mas a voz não sai,
fica morrendo no peito sem passar pela boca. O que me aconteceu, não posso avaliar,
por mais que me esforce, a cabeça zonza não deixa que eu pense. Terei perdido a
voz ou estarei surdo? Mas como?! Uma dolorosa interrogação. Não devo e não
quero admitir nem uma coisa nem outra. Tanto a surdez como a mudez são duas
formas de o homem morrer, permanecendo vivo no meio de uma multidão que lhe
passa a ser estranha ou para qual é intruso. E porque não devo admitir nenhuma
das hipóteses, grito novamente até as forças se exaurirem. As veias do pescoço
voltam a tufar, mas a voz se perde outra vez no peito sem que eu a ouça. Desfaço-me
em suor. Sinto-me aniquilado, como se estivesse sendo esmagado por uma rocha. De
nada me tem adiantado bufar. Só agora noto que estou de pijama. Aliás, não é de
pijama que estou; é de roupão. Tudo — a começar do roupão que não é meu e nem
sei de quem seja — me é inteiramente estranho, confuso. Se não encontro uma explicação
ou se não aparece ninguém, sou capaz de acabar louco. Ou já não o estarei? Não,
não posso estar louco: estivesse e saberia de alguma forma. Ou será que os loucos
soo tão loucos assim que não chegam a ter consciência da doença mental que
sofrem? Nem louco nem surdo estou: principio a ouvir os ruídos da cidade que
vive lá fora. Que bom ouvir! Sinto-me como se despertasse de um pesadelo.
Desta vez é o repicar do sino que ouço.
Deve haver alguma igreja por perto. Talvez agora eu possa ter uma ideia, ainda
que vaga, de onde eu me encontro. Desisto: não me lembro de ter algum amigo ou
pessoa da que more próximo a alguma igreja. Agora que estou convicto de que
ouço, por que não grito, chamo por alguém? Primeiro devo tentar levantar-me. E
se não o conseguir? Ora, deixa de ser covarde, homem! Que te impede de levantar-se?
Viste, como foi fácil? Curioso, há poucos instantes, apesar de todo o meu esforço
— cheguei a ensopar de suor o roupão — não consegui sequer mexer-me da cama.
Agora que estou de pé, posso sondar o ambiente, estudar o aspecto do quarto
para ter uma ideia de onde me encontro. Uma coisa afirmo: este é um quarto de
gente grã-fina. Mas de quem, se não conheço ninguém assim? Seja lá quem for, admiro-lhe
o esmerado gosto e a decoração primorosa do apartamento. Vi um abajur igualzinho
a esse no magazine, deve custar uma fortuna. Ah! que perfume suave, menino. Esquisito
tudo isso que me está acontecendo: só agora notei esse perfume e, no entanto, ele
já existia antes, pois é no quarto precisamente na cama em que estive deitado
onde mais o possa aspirar. Tenho a impressão de que até as paredes estão perfumadas.
Algo me diz que isto aqui pertence ao sexo oposto, ao chamado sexo fraco.
Intriga-me, todavia, quem seja esse alguém. Já que recuperei a audição — terei
perdido-a mesmo? — e que vou recuperando a mim mesmo, por que não tento gritar,
chamar alguém? Grito. A voz sai forte como um trovão, mas ninguém aparece e nem
sequer responde. Porém, já é um grande alívio voltar a ouvir a própria voz.
Posso dizer que me sinto como houvesse ressuscitado.
Vou agora recuperando a lucidez, as ideias
vão se juntando como num quebra-cabeça; pedaço por pedaço, até se inteirar
completamente. Lembro-me que ontem — teria sido mesmo ontem ou anteontem? — estive
num aniversário ou coisa semelhante. De uma coisa não tenho dúvida devia ser de
gente bem, porque a sociedade parecia estar em peso, esnobando. Até um conjunto
musical, eu me lembro de ter visto tocando para quem quisesse dançar. Nunca
tinha visto tanto luxo, tanta comida e bebida. Suponho haver bebido bastante e
a dor de cabeça que, de todo, ainda não passou seja consequência da bebida.
Senão, como explicar todo esse estado de coisa? Quem sabe, talvez tenha capotado:
nunca fui homem de beber mais de uma cerveja, porém, devo ter me excedido. Mas por
que fiz essa excessão? Agora tenho uma vaga lembrança de que havia alguém comigo
lá no aniversário ou não-sei-o-quê. Quem seria? Homem ou mulher? Não consigo
desvendar. O diacho da cabeça não quer mesmo ajudar, começa a ficar zonza e volta
a embaralhar tudo novamente O jeito é gritar, chamar seja lá quem for que esteja
nesta casa. Tento gritar: a voz cresce no peito, porém não passa pela garganta.
O silêncio: os ouvidos, como anteriormente, não captam um ruído sequer. Terei perdido
a audição? a voz? Volto ao estado anterior sem ter sabido o que me está acontecendo
e muito menos o que me aconteceu.
Parabéns pelo trabalho de pesquisa e valorização da cultura brasileira.
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