O fato ocorrido há 50 anos, que escandalizou o bairro
de São Francisco e deitou expectativas na Central de Polícia, não teria
qualquer repercussão em nossos dias. Tudo porque o relacionamento afetivo modificou-se
amplamente, basta citar os casamentos afetivos entre homem/homem e
mulher/mulher.
O matutino A Crítica (8 janeiro 1970) publicou
uma ampla reportagem, cujo cerne foi o indiciamento de uma “mulher macho”, por
haver deflorado (termo da época) uma jovem de dezessete anos. Isso mesmo! Leia e
faça as conclusões.
Reportagem de A Crítica, 8 janeiro 1970 |
Uma jovem foi deflorada numa Seara Espírita. E, por incrível
que pareça, o “autor” é uma mulher. A denúncia foi feita à Polícia e o comissário
Geraldo Amorim Dias instaurou um inquérito. Fato estranho, mas possível, sobretudo
nessa era atômica. Maria da Conceição Souza, a “hermafrodita”, foi ouvida na
DOPS em companhia do seu patrono, o advogado Uachime Muneime. A infelicitada, uma
estudante de 17 anos, fugiu de casa envergonhada. A “mulher-macho” propôs-lhe casamento.
Iriam para Belém e Conceição custearia as despesas.
Nunca a Central de Polícia foi palco de tanta
curiosidade. Todo mundo queria observar o fenômeno sexual. Os comentários eram
os mais incríveis. A dúvida pairava em todos os rostos. Outros “pagavam para ver”.
Dentre as mais estranhas interrogações, uma se destacava pelo tom de gozação: “será
que elas vão casar[-se]?”.
A estranha história iniciou num templo do “Rei Índio”,
uma seara espírita instalada ao longo da rua Geraldo Costa, em São Francisco. “Atua”
caboclo; baixa “guerreiro”; “pai Xangô” quer mamar; e uma madame de seus 37
anos rola pelo chão e se levanta: “saravá, meus irmãos”. Tilintar de garrafas
de cachaça e copos de cerveja. Um fumaceiro feio num ambiente carregado. E
surgiu “Zita”, ingênua, apesar dos seus 17 anos. “Eu nunca arranjei um namorado,
Dona Conceição, peça ao seu Tapindaré que me conceda um de Ano Novo”.
MULHER MACHO, SIM SENHOR
Há muito que os moradores do bairro de São Francisco
conheciam a “mãe de santo” Maria da Conceição Souza, uma madame robusta, esperta nas horas precisas, e muito
vingativa: “ninguém gracejava com a Conceição, que advertia o marmanjo num tom másculo”. Festinhas da jovem-guarda
se intercalavam com os pontos dos “caboclos”, e a dona Conceição Souza nunca escolhera um rapaz para dançar:
o seu caso era mesmo mulher. As vezes era graciosa e passava os pés diante das
mãos: “maninha, como estás apetitosa... Se eu fosse homem iria namorar você”. Várias
jovens, segundo levantamento feito pela polícia, foram “cantadas” pela doméstica
que já foi casada e fez dois partos à cesariana.
Ela tinha tendência para ser homem e isso todo mundo sabia
no bairro. Vestia, calcas compridas, cortava o cabelo à Joãozinho e procurava falar
grosso. Todas as noites funcionava o terreiro espírita. A linha era de Quimbanda,
dos espíritos maus. Rei Índio era o protetor do templo. “Tranca Rua”, o padrinho
de Conceição e “Cabocla de Pena”, “Joãozinho”, “Biara” e outras almas penadas “baixavam”
nas 12 mulheres deixadas dos maridos que frequentavam o templo da rua Geraldo
Costa. E a menina “Zita” foi se acostumando. De repente aprendeu a fumar e a beber
cerveja. Conceição era paraíba... “mulher macho, sim senhor...”
O DEFLORAMENTO
Zita flertou quatro rapazes do seu quilate: estudantes,
direitos e dois possuíam Hondas. Alguém inventava histórias e os namorados da jovem
iam cantar noutra freguesia. Zita uma vez chorou; teria conhecido o amor. “Mamãe,
eu vou na Dona Conceição para que ela benza o meu coração... Eu já sei que não vou
ter sorte com namorado”, afirmava a jovem.
Por último andava estranha, sempre triste e nunca mais ninguém
conheceu a cor do seu sorriso. As frequências de hora no terreiro do Rei Índio
passaram a se prolongar. Dias, noites a fio, semanas. Se procurava a Zita, ela estava
na casa da D. Conceição. (...) O defloramento ocorreu a uma semana, no quarto
da “mulher-macho”. Pareceu mentira, mas “Zita” não suportou a realidade: fugiu de
casa envergonhada. (...)
Conceição, a "mulher-macho" de óculos. |
POLÍCIA
“Zita” voltou para casa e narrou o motivo da sua fuga
repentina. O alarme foi geral. Discussão, comentários, a rua toda logo soube. O
comissário Geraldo Dias empalideceu com a realidade do fato. Raimundo Gonçalves
de Araújo, irmão da moça, foi até desacreditado. “Se a tua irmã não existir, vou
te prender para não gracejares com as autoridades”, dizia o policial. “Zita” sobe
a escada da Central e mais de 100 pessoas suspiram de expectativa. Geraldo Dias
ouve as partes e resolve instaurar o inquérito. Ouviu Conceição, que negou
tudinho: “sou normal, pode me examinar”. Acareou as partes, e “Zita” acusou a madame:
“foi a senhora, sim... entendeu, sua traidora.
O advogado Uachime Moneime tentava barrar o acesso dos
jornalistas e fotógrafos dos jornais, “Zita” foi a exame ginecológico solicitado
pelo seu advogado Roberto Franco de Sá e o resultado será fornecido a imprensa hoje
à tarde. Conceição iria à exame de reconhecimento, mas foi liberada a pedido do
seu advogado. “Ela é homem sim... Quer ver levanta a saia dela”, gritava
nervosa a mãe de “Zita”.
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