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sexta-feira, janeiro 10, 2020

MULHER-MACHO EM MANAUS

O fato ocorrido há 50 anos, que escandalizou o bairro de São Francisco e deitou expectativas na Central de Polícia, não teria qualquer repercussão em nossos dias. Tudo porque o relacionamento afetivo modificou-se amplamente, basta citar os casamentos afetivos entre homem/homem e mulher/mulher.
O matutino A Crítica (8 janeiro 1970) publicou uma ampla reportagem, cujo cerne foi o indiciamento de uma “mulher macho”, por haver deflorado (termo da época) uma jovem de dezessete anos. Isso mesmo! Leia e faça as conclusões.

Reportagem de A Crítica, 8 janeiro 1970
Uma jovem foi deflorada numa Seara Espírita. E, por incrível que pareça, o “autor” é uma mulher. A denúncia foi feita à Polícia e o comissário Geraldo Amorim Dias instaurou um inquérito. Fato estranho, mas possível, sobretudo nessa era atômica. Maria da Conceição Souza, a “hermafrodita”, foi ouvida na DOPS em companhia do seu patrono, o advogado Uachime Muneime. A infelicitada, uma estudante de 17 anos, fugiu de casa envergonhada. A “mulher-macho” propôs-lhe casamento. Iriam para Belém e Conceição custearia as despesas.
Nunca a Central de Polícia foi palco de tanta curiosidade. Todo mundo queria observar o fenômeno sexual. Os comentários eram os mais incríveis. A dúvida pairava em todos os rostos. Outros “pagavam para ver”. Dentre as mais estranhas interrogações, uma se destacava pelo tom de gozação: “será que elas vão casar[-se]?”.
A estranha história iniciou num templo do “Rei Índio”, uma seara espírita instalada ao longo da rua Geraldo Costa, em São Francisco. “Atua” caboclo; baixa “guerreiro”; “pai Xangô” quer mamar; e uma madame de seus 37 anos rola pelo chão e se levanta: “saravá, meus irmãos”. Tilintar de garrafas de cachaça e copos de cerveja. Um fumaceiro feio num ambiente carregado. E surgiu “Zita”, ingênua, apesar dos seus 17 anos. “Eu nunca arranjei um namorado, Dona Conceição, peça ao seu Tapindaré que me conceda um de Ano Novo”.

MULHER MACHO, SIM SENHOR
Há muito que os moradores do bairro de São Francisco conheciam a “mãe de santo” Maria da Conceição Souza, uma madame robusta, esperta nas horas precisas, e muito vingativa: “ninguém gracejava com a Conceição, que advertia o marmanjo num tom másculo”. Festinhas da jovem-guarda se intercalavam com os pontos dos “caboclos”, e a dona Conceição Souza nunca escolhera um rapaz para dançar: o seu caso era mesmo mulher. As vezes era graciosa e passava os pés diante das mãos: “maninha, como estás apetitosa... Se eu fosse homem iria namorar você”. Várias jovens, segundo levantamento feito pela polícia, foram “cantadas” pela doméstica que já foi casada e fez dois partos à cesariana.
Ela tinha tendência para ser homem e isso todo mundo sabia no bairro. Vestia, calcas compridas, cortava o cabelo à Joãozinho e procurava falar grosso. Todas as noites funcionava o terreiro espírita. A linha era de Quimbanda, dos espíritos maus. Rei Índio era o protetor do templo. “Tranca Rua”, o padrinho de Conceição e “Cabocla de Pena”, “Joãozinho”, “Biara” e outras almas penadas “baixavam” nas 12 mulheres deixadas dos maridos que frequentavam o templo da rua Geraldo Costa. E a menina “Zita” foi se acostumando. De repente aprendeu a fumar e a beber cerveja. Conceição era paraíba... “mulher macho, sim senhor...”

O DEFLORAMENTO
Zita flertou quatro rapazes do seu quilate: estudantes, direitos e dois possuíam Hondas. Alguém inventava histórias e os namorados da jovem iam cantar noutra freguesia. Zita uma vez chorou; teria conhecido o amor. “Mamãe, eu vou na Dona Conceição para que ela benza o meu coração... Eu já sei que não vou ter sorte com namorado”, afirmava a jovem.
Por último andava estranha, sempre triste e nunca mais ninguém conheceu a cor do seu sorriso. As frequências de hora no terreiro do Rei Índio passaram a se prolongar. Dias, noites a fio, semanas. Se procurava a Zita, ela estava na casa da D. Conceição. (...) O defloramento ocorreu a uma semana, no quarto da “mulher-macho”. Pareceu mentira, mas “Zita” não suportou a realidade: fugiu de casa envergonhada. (...)
Conceição, a
"mulher-macho"
de óculos.

POLÍCIA
“Zita” voltou para casa e narrou o motivo da sua fuga repentina. O alarme foi geral. Discussão, comentários, a rua toda logo soube. O comissário Geraldo Dias empalideceu com a realidade do fato. Raimundo Gonçalves de Araújo, irmão da moça, foi até desacreditado. “Se a tua irmã não existir, vou te prender para não gracejares com as autoridades”, dizia o policial. “Zita” sobe a escada da Central e mais de 100 pessoas suspiram de expectativa. Geraldo Dias ouve as partes e resolve instaurar o inquérito. Ouviu Conceição, que negou tudinho: “sou normal, pode me examinar”. Acareou as partes, e “Zita” acusou a madame: “foi a senhora, sim... entendeu, sua traidora.
O advogado Uachime Moneime tentava barrar o acesso dos jornalistas e fotógrafos dos jornais, “Zita” foi a exame ginecológico solicitado pelo seu advogado Roberto Franco de Sá e o resultado será fornecido a imprensa hoje à tarde. Conceição iria à exame de reconhecimento, mas foi liberada a pedido do seu advogado. “Ela é homem sim... Quer ver levanta a saia dela”, gritava nervosa a mãe de “Zita”.


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