A Petrobras desenvolve
inúmeras iniciativas, sabemos, mas uma delas, no campo cultural, surpreendeu-me
duplamente.
As ruas de
terra batida e poeirentas do bairro deslizavam velozmente sob os aros da
bicicleta do garoto, enquanto o sol descia verticalmente no horizonte. As casas
de madeira e algumas em alvenaria também descortinavam lépidas ao seu lado. Sem
que tivesse sido avisado, voltava mais cedo pra casa, guiado apenas pela sua
intuição casual, embora sua labuta diária tenha sido mais curta nesse dia. E existia
alguma coisa no ar que conjecturava uma adversidade da vida. Estranhamente
estava mais tenso, apesar da tenra idade e de não haver nenhum motivo aparente que
colaborasse com esse tédio.
Renato Mendonça, 2010 |
O projeto intitula-se
Prata da Casa e destina-se “a incentivar
as habilidades artísticas e a criatividade da força de trabalho do Sistema
Petrobras no Brasil e no exterior”.
Meu irmão
Renato participou do projeto, na modalidade Literatura 2012 e na categoria
conto. E aqui registro minha melhor impressão: com o conto – A última noite, ele levou um prêmio.
A
ÚLTIMA NOITE
Renato Mendonça
Antes de
chegar, observou um pequeno alvoroço que se formava. Nada demasiado, porém
diferente da imobilidade dos dias anteriores. Diferente daquela simplicidade
costumeira, pacata. Um pouco mais de gente entrando e saindo de sua casa,
apenas isso.
Parou em
frente ao portão e lhe anteciparam a desdita. Estancou antes de entrar, feito
um cavalo xucro ante um obstáculo, hipnotizado pela má notícia. De súbito, sua
alma se angustiou e pensamentos estranhos invadiram sua mente, mesmo
considerando que, em face da doença, já podia ser esperado aquele desfecho. Por
mais paradoxal que possa parecer, a dor o fortaleceu. Nenhuma lágrima, naquele
momento, rolou no seu rosto.
Da porta do
quarto, avistou um corpo franzino estendido na cama, inerte, derrotado. Não
conseguira falar nenhuma palavra até então. Apenas a mente produziu efeitos no
seu comportamento e nos seus gestos. O olhar vazio não queria ver o acontecido,
não estivera nunca preparado para essa fatalidade. Limitou-se a olhar sem ver
nada, sem abstrair o tamanho que a separação iria lhe impor.
Nem entrou
no quarto, havia tanta gente, e tanta coisa para os adultos providenciarem que
preferiu se afastar. Ainda haveria tempo para se despedir do corpo da avó,
antes de olhá-la pela última vez. Saiu e postou-se no alpendre que dava acesso
ao quintal. No varal, roupas dela estendidas lhe traziam mais lembranças. Lá
dentro, todos se falavam ao mesmo tempo, alguns recordando fatos, atitudes,
outros apenas bisbilhotando. A família ocupada em encomendar o caixão, flores e
tudo mais. A vizinhança preocupada com os quitutes, e com o café e o refresco
que seriam servidos à noite durante o velório, como eram de praxe.
Para o garoto,
do lado de fora, a avó ainda estava viva nas recordações resgatadas de sua
história. Acompanhado imaterialmente de um fundo musical de “Fina Estampa”,
canção peruana que ela adorava cantarolar, reviu sua batalha, no início do
século passado, como uma mulher emancipada num país notadamente machista.
A emigração
do Peru, cercada de mistérios e de dois filhos menores — os outros três haviam
ficado para trás, sabe Deus com quem. O fato é que conseguiu, analfabeta, lavadeira
ou faxineira, vê-los todos criados. Contaram-me que viajara numa canoa e
atravessara o Rio Solimões, remando noturnamente para não ser vista, e não ser obrigada
a retornar para sua terra. Deveria haver algo infausto que a fez desistir da
pátria natal.
Muitos
outros fatos ainda permaneciam latentes na memória do garoto. Alguns gestos de
ternura, outros nem tanto. Algumas broncas, alguns conselhos. Alguns corretivos
ríspidos para moleques travessos. Típico de uma pessoa que educa aos trancos e
barrancos porque não teve a oportunidade de estudar ou porque a sociedade lhe
fora cruel. Entendia, entretanto, que tudo fazia parte do destino que Deus
traçara para que tivesse uma substituta, consanguínea, da mãe que perdera tão
precoce.
Caiu a
noite, a última noite, no dia seguinte seria o enterro, ainda pela manhã. O
caixão azul claro sobre a mesa da sala fazia uma exposição do desatino. Do seu
quarto, deitado, observava que lentamente algumas pessoas chegavam para lhe
homenagear, e queriam lhe tocar. Outras levantavam o véu para ver-lhe o rosto.
Pareciam até que não a conheciam. Censurou as tristes cenas desumanas de gente que
deseja ver seu semelhante morto. O garoto não concordava com isso. Prometeu a
si mesmo, a partir dela, não ver mais ninguém — mesmo o ente mais querido —
morto num caixão. Não queria ter na mente as lembranças mortas, preferiria as
vivas, felizes e eternas. A morte lhe era uma derrota, um feixe de agruras, um
êxtase do desconhecido, do outro lado da vida.
Finalmente o
sono o venceu.
Ela levantou-se
lentamente, e aproximou-se de mansinho, os mesmos passos lentos que adquirira
nos últimos anos. O mesmo cabelo penteado rente e preso em coque com um pente
curvo no alto da cabeça. O mesmo vestido de bolinhas. Sentou-se na beirada da
cama, ao seu lado. O seu rosto era lívido, a sua expressão não denotava dor,
somente paz. As rugas se suavizaram sobre uma tez mais clara.
Depositou a
mão sobre sua cabeça como quem profere uma benção. As frases soltas não eram tão
nítidas, mas perfeitamente assimiláveis. Parecia um anjo sublimando uma
anunciação:
Renato, hijo mio, no me olvides. Ahora usted eres un joven, ya
no eres un niño...
Se empieza una nueva vida...
Hay que tener juicio... Usted va a conocer
chicas o mujeres,
pero si no se olvida de que se vendrá como ángel y debe ser conocido que si
distinguen la quién desea; la que quiere; la que te sabrá amar; la que tendrá un
poco de paciencia con usted... No hay que encantarse por la primera, solamente
la que el corazon te pida...
No dia
seguinte, o garoto estava mais tranquilo, embora angustiado. A expectativa pelo
enterro era emoção que não gostaria de estar vivendo naquele momento. Não vira
ou ouvira nada na noite anterior, tinha em mente apenas algo que lhe parecera
um sonho ou imaginação. Agora estava ali
postado ao lado dela, sem olhá-la. Segredando as mesmas orações que rezaram
juntos.
Momento
antes de alçarem o caixão encorajou-se e apresentou-se pela última vez para
despedir-se. E ficou ali, parado, pensativo, olhando seu rosto, desejando
dar-lhe vida. Fechou os olhos para ver-lhe como no sonho, menos esculpido. O
seu vestido branco de bolinhas pretas, o melhor que tinha, servia-lhe pela
última vez.
Nossa! Não sabia que meu compadre escrevia tão bem. Cada vez fico mais encantada com o que ele escreve. Parabéns!
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