CATANDO PAPÉIS & CONTANDO HISTÓRIAS

quarta-feira, agosto 29, 2012

A última noite


A Petrobras desenvolve inúmeras iniciativas, sabemos, mas uma delas, no campo cultural, surpreendeu-me duplamente. 
Renato Mendonça, 2010

O projeto intitula-se Prata da Casa e destina-se “a incentivar as habilidades artísticas e a criatividade da força de trabalho do Sistema Petrobras no Brasil e no exterior”.
 
Meu irmão Renato participou do projeto, na modalidade Literatura 2012 e na categoria conto. E aqui registro minha melhor impressão: com o conto – A última noite, ele levou um prêmio.  

A ÚLTIMA NOITE
Renato Mendonça

 As ruas de terra batida e poeirentas do bairro deslizavam velozmente sob os aros da bicicleta do garoto, enquanto o sol descia verticalmente no horizonte. As casas de madeira e algumas em alvenaria também descortinavam lépidas ao seu lado. Sem que tivesse sido avisado, voltava mais cedo pra casa, guiado apenas pela sua intuição casual, embora sua labuta diária tenha sido mais curta nesse dia. E existia alguma coisa no ar que conjecturava uma adversidade da vida. Estranhamente estava mais tenso, apesar da tenra idade e de não haver nenhum motivo aparente que colaborasse com esse tédio.

Antes de chegar, observou um pequeno alvoroço que se formava. Nada demasiado, porém diferente da imobilidade dos dias anteriores. Diferente daquela simplicidade costumeira, pacata. Um pouco mais de gente entrando e saindo de sua casa, apenas isso.

Parou em frente ao portão e lhe anteciparam a desdita. Estancou antes de entrar, feito um cavalo xucro ante um obstáculo, hipnotizado pela má notícia. De súbito, sua alma se angustiou e pensamentos estranhos invadiram sua mente, mesmo considerando que, em face da doença, já podia ser esperado aquele desfecho. Por mais paradoxal que possa parecer, a dor o fortaleceu. Nenhuma lágrima, naquele momento, rolou no seu rosto.         

Da porta do quarto, avistou um corpo franzino estendido na cama, inerte, derrotado. Não conseguira falar nenhuma palavra até então. Apenas a mente produziu efeitos no seu comportamento e nos seus gestos. O olhar vazio não queria ver o acontecido, não estivera nunca preparado para essa fatalidade. Limitou-se a olhar sem ver nada, sem abstrair o tamanho que a separação iria lhe impor.

Nem entrou no quarto, havia tanta gente, e tanta coisa para os adultos providenciarem que preferiu se afastar. Ainda haveria tempo para se despedir do corpo da avó, antes de olhá-la pela última vez. Saiu e postou-se no alpendre que dava acesso ao quintal. No varal, roupas dela estendidas lhe traziam mais lembranças. Lá dentro, todos se falavam ao mesmo tempo, alguns recordando fatos, atitudes, outros apenas bisbilhotando. A família ocupada em encomendar o caixão, flores e tudo mais. A vizinhança preocupada com os quitutes, e com o café e o refresco que seriam servidos à noite durante o velório, como eram de praxe.

Para o garoto, do lado de fora, a avó ainda estava viva nas recordações resgatadas de sua história. Acompanhado imaterialmente de um fundo musical de “Fina Estampa”, canção peruana que ela adorava cantarolar, reviu sua batalha, no início do século passado, como uma mulher emancipada num país notadamente machista.

A emigração do Peru, cercada de mistérios e de dois filhos menores — os outros três haviam ficado para trás, sabe Deus com quem. O fato é que conseguiu, analfabeta, lavadeira ou faxineira, vê-los todos criados. Contaram-me que viajara numa canoa e atravessara o Rio Solimões, remando noturnamente para não ser vista, e não ser obrigada a retornar para sua terra. Deveria haver algo infausto que a fez desistir da pátria natal.

Muitos outros fatos ainda permaneciam latentes na memória do garoto. Alguns gestos de ternura, outros nem tanto. Algumas broncas, alguns conselhos. Alguns corretivos ríspidos para moleques travessos. Típico de uma pessoa que educa aos trancos e barrancos porque não teve a oportunidade de estudar ou porque a sociedade lhe fora cruel. Entendia, entretanto, que tudo fazia parte do destino que Deus traçara para que tivesse uma substituta, consanguínea, da mãe que perdera tão precoce.

Caiu a noite, a última noite, no dia seguinte seria o enterro, ainda pela manhã. O caixão azul claro sobre a mesa da sala fazia uma exposição do desatino. Do seu quarto, deitado, observava que lentamente algumas pessoas chegavam para lhe homenagear, e queriam lhe tocar. Outras levantavam o véu para ver-lhe o rosto. Pareciam até que não a conheciam. Censurou as tristes cenas desumanas de gente que deseja ver seu semelhante morto. O garoto não concordava com isso. Prometeu a si mesmo, a partir dela, não ver mais ninguém — mesmo o ente mais querido — morto num caixão. Não queria ter na mente as lembranças mortas, preferiria as vivas, felizes e eternas. A morte lhe era uma derrota, um feixe de agruras, um êxtase do desconhecido, do outro lado da vida. 
Finalmente o sono o venceu.
 
Ela levantou-se lentamente, e aproximou-se de mansinho, os mesmos passos lentos que adquirira nos últimos anos. O mesmo cabelo penteado rente e preso em coque com um pente curvo no alto da cabeça. O mesmo vestido de bolinhas. Sentou-se na beirada da cama, ao seu lado. O seu rosto era lívido, a sua expressão não denotava dor, somente paz. As rugas se suavizaram sobre uma tez mais clara. 

Depositou a mão sobre sua cabeça como quem profere uma benção. As frases soltas não eram tão nítidas, mas perfeitamente assimiláveis. Parecia um anjo sublimando uma anunciação:
Renato, hijo mio, no me olvides. Ahora usted eres un joven, ya no eres un niño... Se empieza una nueva vida... Hay que tener juicio... Usted va a conocer chicas o mujeres, pero si no se olvida de que se vendrá como ángel y debe ser conocido que si distinguen la quién desea; la que quiere; la que te sabrá amar; la que tendrá un poco de paciencia con usted... No hay que encantarse por la primera, solamente la que el corazon te pida... 

No dia seguinte, o garoto estava mais tranquilo, embora angustiado. A expectativa pelo enterro era emoção que não gostaria de estar vivendo naquele momento. Não vira ou ouvira nada na noite anterior, tinha em mente apenas algo que lhe parecera um sonho ou imaginação.  Agora estava ali postado ao lado dela, sem olhá-la. Segredando as mesmas orações que rezaram juntos.

Momento antes de alçarem o caixão encorajou-se e apresentou-se pela última vez para despedir-se. E ficou ali, parado, pensativo, olhando seu rosto, desejando dar-lhe vida. Fechou os olhos para ver-lhe como no sonho, menos esculpido. O seu vestido branco de bolinhas pretas, o melhor que tinha, servia-lhe pela última vez.

 

Um comentário:

  1. Nossa! Não sabia que meu compadre escrevia tão bem. Cada vez fico mais encantada com o que ele escreve. Parabéns!

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