Luiz Bacellar, 2008 |
Homem solitário, pode até o mês passado dispensar o auxílio
de outro laço. Vivia com a reserva que lhe é própria, até ser atingindo em
acidente de trânsito. Os jornais noticiaram em pequenas notas.
Agora no Dr. Thomas, avisa aos saudosos que a visita está
programada em dois horários: pela manhã, das 10h às 11h e, pela tarde, das 15h
às 17h.
Mas, qual a motivação para tantos desvelos, afinal, quem é
o poeta Luiz Bacellar? A identificação vem de seu amigo, poeta Thiago de Mello,
que certifica esse afeto em seu livro Manaus,
amor e memória (4ª ed., 2004).
§ B de BACELLAR
De Luiz Bacellar, o meu amado Luiz. Um dos mais altos
poetas, não só de Manaus, mas do nosso tempo. Me sinto orgulhoso - e até publicamente
faço alarde desse orgulho - de merecer o afeto (o enrolado afeto) desse caboclo
em quem reconheço um dos homens mais refinadamente cultos de minha geração.
Há coisa de trinta anos que nós brigamos todos os
dias, quero dizer todos os dias meus vividos em Manaus, quando eu chego e é ele
uma das primeiras pessoas a quem procuro. Isso quando ele não adivinha a minha
chegada num lance de premonição e já é
o Luiz que me vem ao encontro.
Brigamos por quase tudo. Pondo de parte matéria ideológica
e a minha esperança na transformação da sociedade humana, sobre a qual ele de público
me apoia com o silêncio e um ostensivo ar de desfastio, para depois, sozinho, afirmar
com uma frase cortante e cortês a sua discordância - o pior é
que quase sempre o danado do Luiz está com a razão.
Uma noite recente no Galo Carijó o poeta quis saber
das minhas moradas em Paris; eu lhe entreguei, mais interessado no jaraqui do
Alfredo, detalhes de ruas e boulevards, e me referia ao Hotel Esmeralda, ali na
rue Saint-Julian le Pauvre, cuja janela se abria para a frente da Notre Dame, quando
o Bacellar me interrompeu: "Pela frente não, pela esquerda".
Ele estava certo; ele que nunca esteve em Paris, conhece
a cidade melhor do que eu. O caboclo tem finas sutilezas para divergir; simplesmente
não diverge: interrompe o interlocutor, geralmente com uma pergunta que nada
tem
a ver com o tema da conversa.
Eu disse "caboclo"? Está certo; mas caboclo
de sangue nobre, e ele se exige respeito, maciamente. Bacellar tem brasão e usa
anel de sinete, é mestre em heráldica, sabe todos os ramos antigos
dos barões e dos viscondes do outro lado do mar que abrem a linhagem dos Franco
de Sá e dos Bacellar.
Thiago de Mello, em sua posse na Academia Amazonense de Letras, 1955 |
Primavera sangrenta do Chile, 1973: quando consegui
"Ia visa" para sair, levava na minha bolsa, terrivelmente revistada
pelos militares de Pinochet, apenas três livros: um deles era o Frauta de Barro, uma das mais importantes
obras da poesia brasileira de todos os tempos - e toda escrita em Manaus.
Eu precisava levar comigo a poesia do companheiro pelos
caminhos ainda ignorados que eu deveria percorrer sozinho em nome do amor ao
meu povo. Quando o avião tomou a altura das nuvens, abri a minha querida bolsa
de couro, retirei o volume e li em voz alta, no meio do medo aliviado dos passageiros
que escapavam do inferno:
No livre azul o sossegado vento
lívido sonha linhas de escultura
que moldará nas nuvens no momento
de apascentá-las pela tarde pura.
Num arrepio de pressentimento
o ruflo de asa risca na brancura,
o sol arranca brilhos do cimento
do muro novo, a folha cai. Madura.
Tudo o verão proclama. A tarde limpa,
esmaltada de claro; pela grimpa
do morro verde a cabra lenta vai ...
A luz resvala na amplidão sonora.
Por que senti roçar-me a face agora
um beijo, um frêmito, um suspiro, um ai?
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