A Crítica, 19 agosto 1952 |
Carlos Alberto de Almeida
Barroso (1918-1993) escreveu este artigo em 1952, quando os bondes ainda
circulavam precariamente pela cidade. Oriundo de Manacapuru (AM), bacharelou-se
pela Faculdade de Direito do Amazonas (1944). Jornalista de longo curso nos
matutinos locais, o autor pertenceu à Academia Amazonense de Letras, onde
assumiu o colar acadêmico em 1960.
Bondes
Até onde posso recuar no tempo com o auxilio da memória, distingo em Manaus uma série
de linhas de bondes, com diversos nomes: Cachoeirinha, Circular Sete
de Setembro, Flores, Bilhares,
Vila Municipal, depois Adrianópolis,
Fábrica
de Cerveja, Remédios, Saudade Avenida, Saudade Instalação.
Em dias de festa ou nos domingos, havia bondes com outros
nomes. Era então o bonde o veiculo por excelência da cidade, a
condução que todos preferiam, não só
por ser a mais barata, como por
oferecer as melhores condições de segurança
e mesmo de conforto para o nosso clima.
Lembro-me que o primeiro bonde que me impressiono na minha meninice, foi
o Fabrica de Cerveja. E por que? Simplesmente porque foi nele que fiz a minha estreia, "morcegando", como se dizia.
Foi no Plano Inclinado, hoje rua Comendador Alexandre Amorim, próximo à Vila Rezende. Tinha chegado
de Manacapuru e aqui me encontrava
a menos de uma semana com cara e jeito de bisonho habitante dos barrancos
ribeirinhos do Solimões, meio estonteado
com o movimento da cidade.
Fora à taberna do canto fazer compras e de volta, um companheiro da minha
idade, mas muito mais experiente, convidou-me a pegar o bonde que se encontrava
parado enquanto tomava passageiros.
- E' só pegar e saltar, parado mesmo, - disse-me ele num convite incisivo.
Mal, porém, eu me
havia ajeitado à plataforma do veículo, ele dera de marcha. Enquanto
o bonde tomava velocidade, o meu companheiro,
junto a mim advertia-me:
--Vamos logo saltar, que não há outro jeito!
--Vamos logo saltar, que não há outro jeito!
E depois de falar, de
fato, saltou, com perfeito controle
do choque recebido ao pisar no chão.
Comigo, porém, a coisa foi muito diferente, pois
que, neófito ainda nesse negócio de pegar bonde e saltar dele em movimento, ao descer sofri
várias escoriações pelo corpo, culminando
a brincadeira, depois que em casa tomaram conhecimento do ocorrido, com uma surra em condições.
Outro fato que ainda me está vivo
na lembrança, dessa época pitoresca de "morcegação” de bondes, foi a voz de prisão que recebi de um guarda civil, o
qual me surpreendera naquele ameno passatempo e sem me dar oportunidade para a fuga, pegara-me pelo braço e conduzira-me,
não obstante a minha choradeira por mais de um quarteirão, só me soltando para
atender ao pedido de um desses protetores dos moleques injustiçados que sempre surgem em tais ocasiões. E tudo isso somente por causa dos bondes,
tão irresistivelmente sedutores, tão gostosos,
para se dar uma "pegada"!
Bonde do Plano Inclinado |
Mas os bondes, ao tempo em que trafegavam com regularidade, desempenharam um
papel relevante na vida desta cidade, Pode-se dizer que o bonde vivia ativamente incorporado ao seu substituto
mental. Ninguém prescindia do bonde, quer nos momentos de trabalho, quer nos momentos de distração.
O bonde retratava bem a alma da cidade, na sua fisionomia serena ou despreocupada,
e nas suas a alegrias ou nas suas angustias. Quando a cidade
estava triste, os bondes apareciam vastos, quase sem passageiros.
Bondes cheios, entretanto, era sinal de alegria, de satisfação.
Todos se afeiçoavam a um ou dois bondes, que eram os seus prediletos. E
encontrava-se neles até certos atributos comuns às pessoas.
Havia os bondes sérios que se impunham aos passageiros pelo seu porte, pelo seu aprumo e que inspiravam mais segurança que os outros. Os da linha do circular estavam neste caso. Fábrica, Vila Municipal e Cachoeirinha, foram
sempre bondes pouco simpáticos. Nos bons
tempos, quando se falava no Flores
provocava-se um calafrio nas senhoras pudicas
e nas virgens românticas.
Era o bonde
proibido, interditado às pessoas decentes. Sim, Flores era um bonde suspeito e, por isso, evitado. Nazaré foi sempre a linha
simpática, cujo percurso dava uma agradável sensação de volta bem aproveitada.
Os mais pitorescos eram, no entanto, o Remédios,
os dois Saudades. Eram os bondes dos
namorados. Neles sempre tinham início os flertes, as inofensivas conquistas
amorosas. Nas tardes de domingos e feriados disputavam-se essas conduções com
muito interesse e entusiasmo. Mesmo nos dias comuns esses bondes sugeriam sempre uma nota risonha da cidade. Pareciam
os bondes adolescentes, e assim recordavam sempre a mocidade, a alegria, a
vida.
Quantos amores não tiveram o seu início nesses bondes ou deles se serviram
para alimento da sua chama! (segue)
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