Linha d´água: crônicas, de L. Ruas |
Em homenagem ao saudoso mestre das artes, na antevéspera de seu aniversário, reescrevo dele um texto constante de Linha d´água: crônicas (Rio: Editora Artenova, 1970). A festa que os amigos e ex-alunos do padre Luiz Ruas, ou simplesmente L. Ruas, organizam, será na segunda-feira 28, evocando os títulos herdados e outras manifestações de sua mente.
A VOLTA
Quando ouviu o ruído
de uma chave sendo introduzida na fechadura, por
uma
dessas intuições inexplicáveis do coração, ela não
pensou que se tratasse de
um salteador, mas de alguém que estava
acostumado a fazer inúmeras
vezes
aquele mesmo gesto.
- É ele,
pensou.
E conservou-se imóvel na cadeira
perto do quebra-luz. Apenas
repousou o
livro sobre as pernas e retirou os óculos.
Como há
vinte anos atrás, depois do jantar, ela se sentava naquela
cadeira
e ficava lendo ou bordando alguma coisa. Passados quinze
ou vinte minutos, a
empregada lhe dizia boa-noite e fechava a porta
atrás de si. Ela ficava só com o seu
silêncio.
No começo
foi muito difícil. Foi muito difícil mesmo. Muitas
vezes esperava
que a empregada saísse logo
e, apenas a porta se
fechava atrás dela, o
pranto irrompia incontrolável. Não foi nem uma
nem duas vezes que ela
pensou em se vestir e ir para a rua. Ao cinema,
ao teatro ou a um bar. Uma
noite chegou mesmo a subir ao quarto,
abrir o guarda-roupa. Mas, depois,
se sentou na cama larga e macia
e tão vazia e chorou até o sono chegar.
Seus pais vieram buscá-la.
- Que vai
você ficar fazendo sozinha nesta casa? Você pode
recomeçar uma vida nova.
Você ainda é muito jovem.
Naquele
tempo era mesmo. Sete anos mais moça do que ele, poderia muito
bem, como diziam
seus pais,
ter
recomeçado uma vida nova. Poderia ter
viajado. Ido para a Europa. Ou para os
Estados Unidos. E lá, recomeçado uma
vida nova. O que, porém, parecia tão fácil para
os outros, lhe era
infinitamente difícil. Não teria coragem. Não teria forças.
E se deixou ficar
sentada naquela cadeira.
Com a cabeça entre as mãos, apenas ouviu o rumor dos passos de
seu pai e
de sua mãe que se dirigiram, em silêncio, para a porta que se abriu e
fechou.
Quando sentiu a porta fechada, levantou os olhos e ficou olhando-a. E
pensou
consigo mesma sem dizer nada:
- Eu sei que ele vai
voltar.
O que mais
a torturava, de início, foi o medo. Sempre fora medrosa. Era um
sentimento que nunca chegara a
vencer. Quando menina tinha medo de tudo
e não podia dormir sem que sua mãe se
sentasse à beira da cama e aí ficasse
até que dormisse completamente. A luz
ficava sempre acesa. Quando ficou
mocinha o medo continuou a persegui-la. Casou-se. E as piores
horas de
casada eram as horas das noites em que ele voltava tarde do clube.
Duas
horas da manhã e ela sem poder dormir. De medo.
Naquela
noite ela não dormira. Passou a noite toda, sentada na cadeira sem poder
dormir. O mesmo aconteceu na outra noite. E a
terceira
noite foi igual às duas
primeiras. Foi muito difícil e doloroso
se acostumar com seu medo. Mas, vinte anos
de solidão, fizeram com
que se acostumasse.
A porta se abriu. Ele
apareceu na soleira, emoldurado pela noite. Parou e
a ficou olhando sem dizer
qualquer palavra. Ela o olhava, também, e lhe
veio a impressão de que parecia um pássaro ferido. Ferido e cansado. Não
se via a ferida, mas existia em alguma parte dele.
Perdera aquele porte
altivo. Seus cabelos, outrora negros e abundantes,
estavam agora quase completamente brancos. E o rosto cheio de
rugas. Era
um homem machucado.
Em silêncio fechou a
porta atrás de si e subiu para o quarto.
Ela
encostou a cabeça no espaldar da velha cadeira e cerrou docemente os olhos.
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