CATANDO PAPÉIS & CONTANDO HISTÓRIAS

sábado, março 21, 2020

MORRO DA LIBERDADE: HÁ 50 ANOS


De quarentena, revi ontem um texto cinquentenário sobre o Morro da Liberdade, portanto, ainda da infância do bairro. O motivo de minha curiosidade sobre este bairro prende-se ao fato de ter ali residido por seis anos, a partir de 1959. E o segui visitando, enquanto meus familiares lá moraram.

O texto foi escrito para preencher a página dominical. Nele, bem se vê o intento de denegrir, de fazer gracejos com a periferia e seus habitantes. Incrível, mas a reportagem nada encontrou de positivo. Somente lama e prostituição predominam.
Encartado em A Crítica (30 março 1970), conheci os autores da reportagem: Irandy Souza, que escreveu o texto, foi meu concunhado. Aposentado, hoje mora em Curitiba (PR). Se voltasse a ler esse texto, certamente se envergonharia. Pinduca era o apelido do competente fotógrafo, do qual ignoro o destino.
 
Título e foto inseridos em A Crítica, 30 março 1970
 
Antes era só a rua Ceará, que abrigou os primeiros pobres vindos de Educandos. Depois um becozinho, que mais tarde foi transformado em rua Amazonas. O Morro começa ali onde morreu Marlene Paiva, num conflito entre a polícia e muitas pessoas. Subindo aparece o Mercadinho, onde a sujeira caracteriza bem o modo de vida daquele povo.
O macete pela sobrevivência é de dia e de noite. A alimentação é o peixe barato. A malária e outras doenças infectocontagiosas campeiam no lugar. O Morro não tem sistema de esgoto próprio: fossas de pequenas profundidades permitem a aglomeração de insetos transmissores de epidemias
Era um barranco alto, em que ninguém se atrevia a escalar. Já deu até onça no lugar. Depois apareceram os maus elementos, que matavam como o tifo na época. O Morro da Liberdade já teve a sua tradição, o bumba “Tira-Prosa”, uma escola de samba e a tribo dos “Irupixunas”.

VENDE-SE ÁGUA
A igrejinha não foi concluída. O distrito policial foi transferido para o campo do Olaria. Hoje o Morro da Liberdade paga por existir. As ruas promessas demagógicas dos falsos representantes. O problema tende a se agravar com as passadas chuvas. A erosão ameaça muitas famílias, já houve até desabamentos de casas. O Morro da Liberdade nunca viu asfalto, tampouco as plaquetas tradicionais: “Obras da Prefeitura”. Promessas para a solução dos problemas de água e esgoto já são comuns. (...)

MORRO DO FUXICO
Oitenta por cento das residências no Morro da Liberdade são de madeira ordinária e palha de coqueiro. Toda a área é precipitada e doentia. Enfrentar a lama no inverno, a poeira no verão e o carapanã todas as noites.

Só nasce hoje em dia no Morro quem já é predestinado a pagar um castigo. Contudo, vai-se passando no bairro da Liberdade. Com fuxico, confusão, fome, prostituição e doença. Adolescência anêmica e subnutrida é o retrato fiel de todo o sofrimento.


CHIQUEIRO DE PORCOS
Dona Francisca Gomes, uma mexeriqueira do beco do Paraiso, cria porcos no meio da rua, por isso já brigou até com a Raimundinha, mulher do seu Tibúrcio. No beco Santa Rosa há tanta sujeira que lembra até o “Forno do lixo”. Um dia, o “Mirandolino”, um porquinho jitinho e amarelado, saiu da casa da dona Conceição Cruz e se perdeu no meio do lixo.
Subindo, mais adiante, tem um armazém. Aparência bonita, que vende carne e peixe. Varejeiras se misturam com o ar que se respira no ambiente. "Leve, madame, tá amarelinha de gorda. — É carne boa, sabe!", berra o magarefe ladrão, de olhos esbugalhados em direção ao mirrado trocado da dona Nazinha. A carne nada em lama, em consequência da poeira lançada pelos heroicos ônibus que ainda se atrevem em cobrir aquela área.

BURACO DENTRO DE BURACO
As ruas são totalmente esburacadas. O Morro da Liberdade dá-se ao luxo de não registrar qualquer acidente automobilístico nas suas vias, uma vez que nem carroça pode mais subir ao local. A “Lora”, uma mocinha que serve a uma padaria do lugar, tem um calombo no meio da canela, desde a noite em que caiu numa vala na rua Brasil, onde foi falar com o namorado.
As ruas São Benedito, por onde trafegam os coletivos “Ana Cássia”, Ceará, Amazonas [onde morei], Brasil, Santa Rosa e São Vicente estão em situação deprimente. Tem buraco que chega a cobrir um homem em altura, sem levar-se em conta o lamaçal que aumenta à medida em que o inverno chega. (...)

Ilustração inseridas na reportagem de A Crítica, 30 março 1970

JÁ TEM TELEVISÃO
Apesar disso tudo, o Morro da Liberdade tem a sua vida noturna, porém perigosa. Lidermorro [?] e Libermorro são as duas agremiações que comandam o entretenimento da juventude morrense. No carnaval, o embalo é bastante pesado e as brigas se sucedem nos saiões.
Durante o dia dá mais porco e cachorro nas ruas que mocinhas se agarrando no escuro das noites. Muita gente já enricou e conseguiu arranjar posição política à custa daquela gente do Morro. Sofrer já é tradição no bairro, que até agora só tem uma faísca do progresso: energia elétrica. De todos os bairros de Manaus, o Morro é o único que ainda preocupa os serviços de erradicação de Malária. A média de visita às casas é de 6 em 6 meses. Todavia, aquela gente mudou resignada ao sofrimento.
Carregando água dia e noite, passando privações e perigo de vida, crianças, velhos, adolescentes já se acostumaram à vida do Morro. E ninguém vai enjoar, porque a vida é assim, cheia de altos e baixos. Um aparelho de televisão serve a toda uma rua, e quase diariamente surgem brigas de meninos e mulheres solteiras. (...)

SOFRER POR VOCAÇÃO
No igarapé do Quarenta se comprimem lavadeiras, pescadores, banhistas e curiosos. É um foco de piranhas famintas, mas todo mundo do Morro gosta. Aos domingos é o ponto preferido pela moçada. Muitos preparam carrinhos-de-mão e saem em fileiras portando latas d’água. Aquele sistema de lata d’água na cabeça foi modernizado. A gente do Morro, pela coragem e modo de viver, lembra muito bem os favelados do Pasmado. Esqueleto, Cantagalo e outros da Guanabara. A Severina, uma mocinha escura e franzina, lava roupas para a gente de São Jorge, Cachoeirinha, Boulevard e Vila Municipal. Ela passa o dia no Quarenta e tira os sábados para passar roupa. Assim vivem centenas de pessoas, esquecidas e mal alimentadas no Morro da Liberdade. O progresso poderia chegar pelas estradas, mas é bastante perigoso falar agora nisso.

UM BURACO
Espinha na garganta de muito motorista de praça, o Morro da Liberdade tenderá a desaparecer. Pois o mato, a buraqueira e o lixo tomam conta das suas ruas. Os táxis têm horror à palavra Morro, e as desculpas saem com razão: “Meu, me perdoa, lá não dá para ir”. E, com isso, tenderá também a desaparecer o único meio de transporte que são os coletivos. (...)

CARREGAR ÁGUA É UM HÁBITO
Nas ruas do Morro da Liberdade, meninos, moças, rapazes e até velhos se misturam naquele já tradicional ritual da “lata d'água na cabeça.” Ninguém reclama no Morro, pois quem é de lá não enjoa de sofrer. A noite é perigoso ter-se que andar pelas vias escuras e cheias de abismos. Cantigas de sapos vão noite adentro. O Morro lembra um interior brabo, onde a civilização se mistura com porcos, cachorros, cavalos e vacas magras que desfilam lado a lado. Contudo, é até interessante o bairro da Liberdade.
Em junho o bumbá desce à cidade e as índias entoam o cântico indígena das Irupixunas. O Morro só existe durante as festividades folclóricas. No mais é isso que se vê todo dia: buraco, mato, lama, poeira e doença.

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