De quarentena, revi ontem um texto cinquentenário sobre o Morro da Liberdade, portanto, ainda da infância do bairro. O motivo de minha curiosidade sobre este bairro prende-se ao fato de ter ali residido por seis anos, a partir de 1959. E o segui visitando, enquanto meus familiares lá moraram.
O texto foi escrito
para preencher a página dominical. Nele, bem se vê o intento de denegrir, de
fazer gracejos com a periferia e seus habitantes. Incrível, mas a reportagem
nada encontrou de positivo. Somente lama e prostituição predominam.
Encartado em A
Crítica (30 março 1970), conheci os autores da reportagem: Irandy Souza, que
escreveu o texto, foi meu concunhado. Aposentado, hoje mora em Curitiba (PR). Se
voltasse a ler esse texto, certamente se envergonharia. Pinduca era o apelido
do competente fotógrafo, do qual ignoro o destino.
Antes era só a rua Ceará, que abrigou os primeiros
pobres vindos de Educandos. Depois um becozinho, que mais tarde foi
transformado em rua Amazonas. O Morro começa ali onde morreu Marlene Paiva, num
conflito entre a polícia e muitas pessoas. Subindo aparece o Mercadinho, onde a
sujeira caracteriza bem o modo de vida daquele povo.
O macete pela sobrevivência é de dia e de
noite. A alimentação é o peixe barato. A malária e outras doenças infectocontagiosas
campeiam no lugar. O Morro não tem sistema de esgoto próprio: fossas de pequenas
profundidades permitem a aglomeração de insetos transmissores de epidemias
Era um barranco alto, em que ninguém se
atrevia a escalar. Já deu até onça no lugar. Depois apareceram os maus elementos,
que matavam como o tifo na época. O Morro da Liberdade já teve a sua tradição,
o bumba “Tira-Prosa”, uma escola de samba e a tribo dos “Irupixunas”.
VENDE-SE ÁGUA
A igrejinha não foi concluída. O distrito
policial foi transferido para o campo do Olaria. Hoje o Morro da Liberdade paga
por existir. As ruas promessas demagógicas dos falsos representantes. O problema
tende a se agravar com as passadas chuvas. A erosão ameaça muitas famílias, já
houve até desabamentos de casas. O Morro da Liberdade nunca viu asfalto, tampouco
as plaquetas tradicionais: “Obras da Prefeitura”. Promessas para a solução dos
problemas de água e esgoto já são comuns. (...)
MORRO DO FUXICO
Oitenta por cento das residências no
Morro da Liberdade são de madeira ordinária e palha de coqueiro. Toda a área é
precipitada e doentia. Enfrentar a lama no inverno, a poeira no verão e o
carapanã todas as noites.
Só nasce hoje em dia no Morro quem já é predestinado a pagar um castigo. Contudo, vai-se passando no bairro da Liberdade. Com fuxico, confusão, fome, prostituição e doença. Adolescência anêmica e subnutrida é o retrato fiel de todo o sofrimento.
CHIQUEIRO DE PORCOS
Dona Francisca Gomes, uma mexeriqueira do
beco do Paraiso, cria porcos no meio da rua, por isso já brigou até com a
Raimundinha, mulher do seu Tibúrcio. No beco Santa Rosa há tanta sujeira que
lembra até o “Forno do lixo”. Um dia, o “Mirandolino”, um porquinho jitinho
e amarelado, saiu da casa da dona Conceição Cruz e se perdeu no meio do lixo.
Subindo, mais adiante, tem um armazém.
Aparência bonita, que vende carne e peixe. Varejeiras se misturam com o ar que
se respira no ambiente. "Leve, madame, tá amarelinha de gorda. — É carne boa,
sabe!", berra o magarefe ladrão, de olhos esbugalhados em direção ao
mirrado trocado da dona Nazinha. A carne nada em lama, em consequência da
poeira lançada pelos heroicos ônibus que ainda se atrevem em cobrir aquela
área.
BURACO DENTRO DE BURACO
As ruas são totalmente esburacadas. O
Morro da Liberdade dá-se ao luxo de não registrar qualquer acidente automobilístico
nas suas vias, uma vez que nem carroça pode mais subir ao local. A “Lora”, uma
mocinha que serve a uma padaria do lugar, tem um calombo no meio da canela,
desde a noite em que caiu numa vala na rua Brasil, onde foi falar com o namorado.
As ruas São Benedito, por onde trafegam
os coletivos “Ana Cássia”, Ceará, Amazonas [onde morei], Brasil, Santa
Rosa e São Vicente estão em situação deprimente. Tem buraco que chega a cobrir
um homem em altura, sem levar-se em conta o lamaçal que aumenta à medida em que
o inverno chega. (...)
Ilustração inseridas na reportagem de A Crítica, 30 março 1970 |
JÁ TEM TELEVISÃO
Apesar disso tudo, o Morro da Liberdade
tem a sua vida noturna, porém perigosa. Lidermorro [?] e Libermorro são as duas
agremiações que comandam o entretenimento da juventude morrense. No
carnaval, o embalo é bastante pesado e as brigas se sucedem nos saiões.
Durante o dia dá mais porco e cachorro
nas ruas que mocinhas se agarrando no escuro das noites. Muita gente já enricou
e conseguiu arranjar posição política à custa daquela gente do Morro. Sofrer já
é tradição no bairro, que até agora só tem uma faísca do progresso: energia elétrica.
De todos os bairros de Manaus, o Morro é o único que ainda preocupa os serviços
de erradicação de Malária. A média de visita às casas é de 6 em 6 meses. Todavia,
aquela gente mudou resignada ao sofrimento.
Carregando água dia e noite, passando
privações e perigo de vida, crianças, velhos, adolescentes já se acostumaram à
vida do Morro. E ninguém vai enjoar, porque a vida é assim, cheia de altos e
baixos. Um aparelho de televisão serve a toda uma rua, e quase diariamente surgem
brigas de meninos e mulheres solteiras. (...)
SOFRER POR VOCAÇÃO
No igarapé do Quarenta se comprimem lavadeiras,
pescadores, banhistas e curiosos. É um foco de piranhas famintas, mas todo
mundo do Morro gosta. Aos domingos é o ponto preferido pela moçada. Muitos
preparam carrinhos-de-mão e saem em fileiras portando latas d’água. Aquele
sistema de lata d’água na cabeça foi modernizado. A gente do Morro, pela
coragem e modo de viver, lembra muito bem os favelados do Pasmado. Esqueleto,
Cantagalo e outros da Guanabara. A Severina, uma mocinha escura e franzina,
lava roupas para a gente de São Jorge, Cachoeirinha, Boulevard e Vila Municipal.
Ela passa o dia no Quarenta e tira os sábados para passar roupa. Assim vivem
centenas de pessoas, esquecidas e mal alimentadas no Morro da Liberdade. O
progresso poderia chegar pelas estradas, mas é bastante perigoso falar agora
nisso.
UM BURACO
Espinha na garganta de muito motorista de
praça, o Morro da Liberdade tenderá a desaparecer. Pois o mato, a buraqueira e
o lixo tomam conta das suas ruas. Os táxis têm horror à palavra Morro, e as desculpas
saem com razão: “Meu, me perdoa, lá não dá para ir”. E, com isso, tenderá
também a desaparecer o único meio de transporte que são os coletivos. (...)
CARREGAR ÁGUA É UM HÁBITO
Nas ruas do Morro da Liberdade, meninos,
moças, rapazes e até velhos se misturam naquele já tradicional ritual da “lata
d'água na cabeça.” Ninguém reclama no Morro, pois quem é de lá não enjoa de
sofrer. A noite é perigoso ter-se que andar pelas vias escuras e cheias de
abismos. Cantigas de sapos vão noite adentro. O Morro lembra um interior brabo,
onde a civilização se mistura com porcos, cachorros, cavalos e vacas magras que
desfilam lado a lado. Contudo, é até interessante o bairro da Liberdade.
Em junho o bumbá desce à cidade e as
índias entoam o cântico indígena das Irupixunas. O Morro só existe
durante as festividades folclóricas. No mais é isso que se vê todo dia: buraco,
mato, lama, poeira e doença.
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