Julguei
que tivesse esgotado a bibliografia sobre este episódio nacional junto ao
acervo local, quando publiquei Cândido Mariano & Canudos (Ufam,
1997). Lembrando que o fiz, para registrar a participação da Polícia Militar do
Amazonas naquela campanha fratricida.
No
entanto, ao revisitar as crônicas e outros artigos do jornalista Ramayana de
Chevalier, publicados no jornal A Gazeta, em 1961, deparei com a página
abaixo postada. Chevalier evoca um personagem da PM paulista, todavia, no texto
encontra-se sua opinião sobre o movimento de Antônio Conselheiro. Ponto.
A Gazeta, Manaus, 21 junho 1961 |
MORREU o
derradeiro testemunho. Há três dias, num leito do Hospital da Força Pública do
Estado de São Paulo, fechou os olhos para o drama do momento, o coronel
Agostinho Pereira da Fonseca. Parece um acontecimento simples, sem qualquer significação.
Preciso é voltar as páginas da História, mergulhar nos segredos do agreste,
para enfrentar o último depoimento do fantástico e desolado drama das
caatingas.
Certo dia, um navio ronceiro despejou num porto de São Paulo, um jovem português.
Tinha cinco anos de idade, aventuroso, imantado pela terra, ardente e
desejando, do fundo d’alma fazer “os brasis”. Aos quinze, ingressou decidido na
tropa da Força Pública bandeirante. O rasto de João Ramalho ainda cantava no
chão do planalto. Um ano depois, esse filho do país irmão era alferes quartelmar
do Batalhão Tobias de Aguiar. Por essa época a nação atravessava um grave
período. Corria pelo espinhaço da Pátria um frémito incontido. Com a derrubada
do trono e o indeciso nascimento da República, surgiram pelos sertões os gritos
isolados, contra as injustiças e o abandono. Rebentara na Bahia a revolução dos
jagunços, que os jornais franceses chamavam de “revolta dos oprimidos”.
Antônio Conselheiro,
como a sombra da vingança, erguida nos frontões de Canudos, contemplava o
Brasil. Uma úlcera recôndita queria destruir a unidade do país. Já não eram os
oradores, já não faziam parte dela os abolicionistas vociferantes e os poetas antiescravagistas.
Em armas, clavinotes à cinta e punhais à mão, os sertanejos seguiam, como
fascinados pela sua magia espiritual, a grande figura de Maciel. Um arrepio
sacudiu a nação. O Brasil inteiro vibrou com essa arrancada sinistra. São Paulo
sentiu, na carne, a ameaça de fraccionamento. Poderia ser outra luta de
secessão, essa mesma que ameaçou a integridade norte-americana, derivada do
escravagismo negro. Canudos era a “Tróia cabocla”. Ninguém poderia compreender
uma revolta, partida do íntimo do país, espevitando a atenção da Europa,
convidando observadores estrangeiros, tentando contra a velha unidade nacional,
nascida do sangue dos que lutaram contra Van Sckopp, contra Madeira, contra Daclerc
e Nicolau Durand de Villegaignon.
A barricada
moral da Pátria se opunha à intentona mestiça de Canudos. Era preciso
consolidar os alicerces da República! Era necessário manter as normas do começo
da vida democrática, para a consolidação de um país que alvorecia para o mundo.
Foi assim que São Paulo entendeu o alarma partido de Canudos. Quando se
decretou a mobilização de toda a tropa fardada, do Primeiro até ao Quinto
Exército, as Polícias Militares compareceram à chamada. Do Amazonas ao Rio
Grande do Sul, as Forças Públicas cumpriram o seu dever: ensanguentaram de
sangue as suas bandeiras, nos massacres do agreste, defendendo a unidade do
Brasil. De São Paulo, num dia brumoso, desceu a serra, para bordo do Itaituba,
rumo à Bahia, o Batalhão Tobias de Aguiar, da Polícia Militar de
Piratininga. Iam cantando, como quem vai para a morte. Levavam nas gargantas o
apelo do país, e na alma os restos da aventura bandeirante.
Dentre essas
vozes, subia ao céu a do alferes Agostinho Pereira da Fonseca. Com dezessete
anos de idade, livre, coração feliz, lá se foi ele para os duros revezes. Na
imensa frente da caatinga, os lacedemônios pardos estabeleceram o seu
desfiladeiro das Portas Quentes. Ali estavam os centauros de Macambira, os
espingardeiros de Antônio Beatinho, os bárbaros de Violante e de Brasílio
Contreiras. Por ali, muito antes do cerco de Paris em 1914, pelas tropas de
Luddendorff, corria a ordem mágica e decisiva: “Ninguém passará!” As lazarinas
azeitadas, as escopetas brilhantes, as carabinas em ponto de tiro e duas mil
almas levantadas para Deus, ao redor de Conselheiro, cantando o Hino à Liberdade!
Nos tabuleiros rústicos, desenrolava-se uma tragédia helênica. O Tobias de
Aguiar entrou em fogo em primeiro lugar. Em Queimadas fora o seu batismo.
Assistiu a morte de Camisão, ao trucidamento de Moreira Cesar, ao desastre do
Cambaio. Reduziu-se a poucos homens. Quando conseguiu cercar a cidade macilenta
e devastada, com o seu casario de palha agachado no chão, os destroços do Tobias
de Aguiar, da Força Pública de São Paulo, acompanharam o Quinto Exército do
general Artur Oscar.
Dentro dele,
no âmago da luta, estava o alferes Agostinho Pereira da Fonseca. Defrontava, com
os seus cinco mil companheiros, às ordens de um brilhante general, os
defensores de Canudos: um velho, uma criança, uma mulher municiadora, e dois
jagunços, de olhos acesos como brasas. Na última arrancada, baionetas em riste,
descendo a escarpa como feras, depois de um preparo de dois dias e duas noites
de artilharia, ainda assim correu o sangue dos invasores da “Troia sertaneja”. “Na
terra do Conseiêro ninguém fala grosso”, gritavam os últimos
remanescentes da mais trágica de todas as aventuras nacionais! E entre o pipocar
da metralha, aos olhos de Deus, aquelas crianças ficaram homens para morrer e
aquela mulher se inscreveu na galeria das Nightingale, das Rosa da Fonseca, das
encouraçadas do Pedrão! Havia lágrimas, sim, havia lágrimas paradas nas órbitas
do cadáver de Antônio Conselheiro, o gigante condutor de homens, um dos maiores
esquizofrênicos da história do mundo!
Numa câmara da
rua Jorge Miranda, armada em velas, sob todas as honras militares, foi
assistido o corpo do coronel Agostinho Pereira da Fonseca. Dali, seguiu, sob o
frio e a chuva, para o cemitério da Quarta Parada, o último abencerragem de
Canudos. E o último herói dessa aventura monstruosa, como se isso nos ligasse
cada vez à gente descobridora, era um português. Encerrou-se a lista. As quinas
e o cruzeiro estão abraçados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário