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sábado, setembro 28, 2019

CANUDOS & POLÍCIA MILITAR


Julguei que tivesse esgotado a bibliografia sobre este episódio nacional junto ao acervo local, quando publiquei Cândido Mariano & Canudos (Ufam, 1997). Lembrando que o fiz, para registrar a participação da Polícia Militar do Amazonas naquela campanha fratricida.

No entanto, ao revisitar as crônicas e outros artigos do jornalista Ramayana de Chevalier, publicados no jornal A Gazeta, em 1961, deparei com a página abaixo postada. Chevalier evoca um personagem da PM paulista, todavia, no texto encontra-se sua opinião sobre o movimento de Antônio Conselheiro. Ponto.

A Gazeta, Manaus, 21 junho 1961

MORREU o derradeiro testemunho. Há três dias, num leito do Hospital da Força Pública do Estado de São Paulo, fechou os olhos para o drama do momento, o coronel Agostinho Pereira da Fonseca. Parece um acontecimento simples, sem qualquer significação. Preciso é voltar as páginas da História, mergulhar nos segredos do agreste, para enfrentar o último depoimento do fantástico e desolado drama das caatingas.

Certo dia, um navio ronceiro despejou num porto de São Paulo, um jovem português. Tinha cinco anos de idade, aventuroso, imantado pela terra, ardente e desejando, do fundo d’alma fazer “os brasis”. Aos quinze, ingressou decidido na tropa da Força Pública bandeirante. O rasto de João Ramalho ainda cantava no chão do planalto. Um ano depois, esse filho do país irmão era alferes quartelmar do Batalhão Tobias de Aguiar. Por essa época a nação atravessava um grave período. Corria pelo espinhaço da Pátria um frémito incontido. Com a derrubada do trono e o indeciso nascimento da República, surgiram pelos sertões os gritos isolados, contra as injustiças e o abandono. Rebentara na Bahia a revolução dos jagunços, que os jornais franceses chamavam de “revolta dos oprimidos”.
Antônio Conselheiro, como a sombra da vingança, erguida nos frontões de Canudos, contemplava o Brasil. Uma úlcera recôndita queria destruir a unidade do país. Já não eram os oradores, já não faziam parte dela os abolicionistas vociferantes e os poetas antiescravagistas. Em armas, clavinotes à cinta e punhais à mão, os sertanejos seguiam, como fascinados pela sua magia espiritual, a grande figura de Maciel. Um arrepio sacudiu a nação. O Brasil inteiro vibrou com essa arrancada sinistra. São Paulo sentiu, na carne, a ameaça de fraccionamento. Poderia ser outra luta de secessão, essa mesma que ameaçou a integridade norte-americana, derivada do escravagismo negro. Canudos era a “Tróia cabocla”. Ninguém poderia compreender uma revolta, partida do íntimo do país, espevitando a atenção da Europa, convidando observadores estrangeiros, tentando contra a velha unidade nacional, nascida do sangue dos que lutaram contra Van Sckopp, contra Madeira, contra Daclerc e Nicolau Durand de Villegaignon.
A barricada moral da Pátria se opunha à intentona mestiça de Canudos. Era preciso consolidar os alicerces da República! Era necessário manter as normas do começo da vida democrática, para a consolidação de um país que alvorecia para o mundo. Foi assim que São Paulo entendeu o alarma partido de Canudos. Quando se decretou a mobilização de toda a tropa fardada, do Primeiro até ao Quinto Exército, as Polícias Militares compareceram à chamada. Do Amazonas ao Rio Grande do Sul, as Forças Públicas cumpriram o seu dever: ensanguentaram de sangue as suas bandeiras, nos massacres do agreste, defendendo a unidade do Brasil. De São Paulo, num dia brumoso, desceu a serra, para bordo do Itaituba, rumo à Bahia, o Batalhão Tobias de Aguiar, da Polícia Militar de Piratininga. Iam cantando, como quem vai para a morte. Levavam nas gargantas o apelo do país, e na alma os restos da aventura bandeirante.
Dentre essas vozes, subia ao céu a do alferes Agostinho Pereira da Fonseca. Com dezessete anos de idade, livre, coração feliz, lá se foi ele para os duros revezes. Na imensa frente da caatinga, os lacedemônios pardos estabeleceram o seu desfiladeiro das Portas Quentes. Ali estavam os centauros de Macambira, os espingardeiros de Antônio Beatinho, os bárbaros de Violante e de Brasílio Contreiras. Por ali, muito antes do cerco de Paris em 1914, pelas tropas de Luddendorff, corria a ordem mágica e decisiva: “Ninguém passará!” As lazarinas azeitadas, as escopetas brilhantes, as carabinas em ponto de tiro e duas mil almas levantadas para Deus, ao redor de Conselheiro, cantando o Hino à Liberdade! Nos tabuleiros rústicos, desenrolava-se uma tragédia helênica. O Tobias de Aguiar entrou em fogo em primeiro lugar. Em Queimadas fora o seu batismo. Assistiu a morte de Camisão, ao trucidamento de Moreira Cesar, ao desastre do Cambaio. Reduziu-se a poucos homens. Quando conseguiu cercar a cidade macilenta e devastada, com o seu casario de palha agachado no chão, os destroços do Tobias de Aguiar, da Força Pública de São Paulo, acompanharam o Quinto Exército do general Artur Oscar.
Dentro dele, no âmago da luta, estava o alferes Agostinho Pereira da Fonseca. Defrontava, com os seus cinco mil companheiros, às ordens de um brilhante general, os defensores de Canudos: um velho, uma criança, uma mulher municiadora, e dois jagunços, de olhos acesos como brasas. Na última arrancada, baionetas em riste, descendo a escarpa como feras, depois de um preparo de dois dias e duas noites de artilharia, ainda assim correu o sangue dos invasores da “Troia sertaneja”. “Na terra do Conseiêro ninguém fala grosso”, gritavam os últimos remanescentes da mais trágica de todas as aventuras nacionais! E entre o pipocar da metralha, aos olhos de Deus, aquelas crianças ficaram homens para morrer e aquela mulher se inscreveu na galeria das Nightingale, das Rosa da Fonseca, das encouraçadas do Pedrão! Havia lágrimas, sim, havia lágrimas paradas nas órbitas do cadáver de Antônio Conselheiro, o gigante condutor de homens, um dos maiores esquizofrênicos da história do mundo!
Numa câmara da rua Jorge Miranda, armada em velas, sob todas as honras militares, foi assistido o corpo do coronel Agostinho Pereira da Fonseca. Dali, seguiu, sob o frio e a chuva, para o cemitério da Quarta Parada, o último abencerragem de Canudos. E o último herói dessa aventura monstruosa, como se isso nos ligasse cada vez à gente descobridora, era um português. Encerrou-se a lista. As quinas e o cruzeiro estão abraçados. 

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