CATANDO PAPÉIS & CONTANDO HISTÓRIAS

sábado, outubro 18, 2014

CINEMAS DE MANAUS




Cine Guarany
O cruzamento da avenida Sete de Setembro com a Getúlio Vargas ficou marcado pelo funcionamento de dois cinemas: Politheama (onde funciona uma das Lojas Americanas) e Guarany (local de uma agência do banco Itau). 

A segunda sala era mais disputada, mais benquista, por vários motivos. Creio que o mais denso era o atendimento proporcionado por seu “gerente”, conhecido por vovô Vasco.

Esse sentimento ainda se percebe em comentários pessoais e publicações jornalísticas. Todos recriminam não o apagamento da sala de projeção, mas a demolição implacável do edifício, trocado por um caixote feioso, enfeando ainda mais o local.

Recorto um texto do poeta Farias de Carvalho, de sua coluna Janela de Mundo, no jornal A Notícia, no qual relembrou um dia de aniversário do Guarany.
(O poeta e os cinemas e o matutino aqui nominados já pertencem à nossa melhor lembrança.)


JANELA DE MUNDO (*)


Farias Carvalho
Dia seis [de agosto] transcorreu mais um aniversário de fundação do Cine Guarany. Pela manhã, ainda bem cedo, fazendo a minha costumeira visita à República Livre do Pina, andei dando uns mergulhos dentro de mim
mesmo, nos desvãos do meu mundo interior, nos labirintos da memória, rebuscando fatos e coisas do passado, numa viagem impregnada de lembranças e de saudades.
Aniversário do GUARANY! a meninada acordava em festa, com a moeda de um mil-réis balançando no bolso, fortuna que chegava para a compra do ingresso e sobrava ainda para um copo duplo de refresco acompanhado de um imenso mata-fome.

Desde às primeiras horas da manhã, começavam a se formar as filas enormes, com os guardas de trânsito postados à porta do cinema, em uniforme de gala, o alto-falante voltado para a rua, a todo volume, como um convite musical, chamando a todos para a grande festa popular, em que se realizavam sorteios, ofereciam-se brindes, tudo antes que, na tela, lotadas a plateia e a galeria, Tom Mix ou Buck Jones começassem a cavalgar os seus corcéis fogosos, perseguindo maus encarados, sob a gritaria terrível da meninada, que ficava atirando aviões de papel, caixinhas de chicletes, quase levando a loucura o pobre do Domingos, velho funcionário que fechava as portas laterais e ficava a andar como uma barata tonta, na tentativa de acalmar a fúria dos meninos endiabrados.

Mas, acima de tudo isso, pairando sobre a confusão da inquietação da garotada, agigantava-se a figura do velho Vasco, o querido Vovô da meninada inteira, com os seus cabelos da cor da neve, o seu rosto rosado de camponês sadio, o seu sorriso sempre iluminado, sempre irradiando ternura e bondade.
 
Cine Guarany
Quando o filme começava, ele colocava-se à entrada interior do cinema, para escutar e atender aos mesmos pedidos de sempre: "Seu Vasco, eu tenho só quinhentos réis, deixa eu entrar?'' E ele, inventando uma carranca que era só de araque, acabava encuiando as mãos e, sem poder conter o riso franco, respondia sempre: “Sobe moleque, sobe, vai pra galeria!"

E era de ver-se, meus irmãos, a correria da turma miúda, da turma pobre dos bairros distantes que, por não dispor dos dez tostões, ficava pechinchando e por fim terminava mesmo entrando com quinhentos,
trezentos, duzentos réis, às vezes até mesmo sem pagar coisa alguma, que era assim, meus irmãos, o vovô Vasco, o imensamente bondoso vovô Vasco, que uma cidade inteira amava profundamente, através de suas
crianças, especialmente as crianças pobres, que, pelo  fato de não terem dinheiro, não ficavam jamais sem as emoções das cargas de cavalaria, trepidando na tela, sob o comando corajoso de Custer, nos combates eternos contra os peles vermelhas. 
De repente, contudo, a voz de um amigo trouxe-me de volta à realidade do presente. E eu olhei para o GUARANY. Foi como se qualquer coisa de mim mesmo quisesse desprender, libertar-se, voltar a saltitar   irrequietante. E eu compreendi, meus irmãos, perfeitamente, que era o menino, o menino de ontem, perdido em bruma e ocasos, que buscava teimoso o reencontro, o reencontro impossível com o passado.

Com duas lágrimas marotas descendo pelo rosto, voltei os olhos para o céu e tive, meus irmãos, sinceramente, a nítida impressão de que do azul, Vovô me fitava sorridente, as brancas mãos unidas como em cuia, a me dizer na linguagem da brisa e da luz: “Eu estou aqui, meu filho, a tua espera. Não te importes com os níqueis e as moedas. Quando vieres, traz uma estrela na alma. Bastará!”

(*) A Notícia, 9 de agosto de 1975

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