CATANDO PAPÉIS & CONTANDO HISTÓRIAS

domingo, julho 22, 2012

RAIMUNDO MORAES (1872-1941) 1ª PARTE


Raymundo Moraes, 1935
Em busca de subsídios para nova pesquisa, esbarrei na preciosa bibliografia deste falecido escritor paraense. Dele se costuma lembrar pelos fatos: um, que foi um comandante de gaiola (alcunha de barco regional); dois, que recebeu o estímulo de presidentes da República, em razão de seu livro Na planície amazônica; três, que foi desconsiderado pelo saudoso Péricles Moraes (sem qualquer parentesco), lembrado presidente da Academia Amazonense de Letras.


Capa do livro
Interessei-me, todavia, pela produção literária do autor paraense. Quando este residiu em Manaus, no governo do interventor Sá (1924) e de Efigênio Salles (1925-30), dirigiu a Biblioteca Pública e a Imprensa Oficial. No ensejo, publicou os livros: Notas dum jornalista (1924); Na planície amazônica (1926); Cartas da floresta (1927); e País das pedras verdes (1930). Editados pela Livraria Clássica (que existiu na rua Guilherme Moreira canto da rua Theodureto Souto), com exceção do último, que foi lançado pela Imprensa Oficial.

Em Um escritor nativista (1986), o saudoso Leandro Tocantins confirma que R. Moraes foi um autodidata, e que frequentara apenas o curso primário. “De suas longas peregrinações através dos rios, na função de “prático” e depois de comandante de gaiola, despertou nele o gosto pelo estudo nas obras que definem em termos de ciência e de literatura a região amazônica”.

Para ilustrar esta postagem, transcrevo em duas partes o capítulo O Gaiola, inserto Na planície amazônica, livro que despertou a admiração de tantos, não apenas de governantes, mas igualmente de casas editoras do Sul do país.

O Gaiola (1ª parte)
Capa da 1ª edição do livro
Vale imenso, terra mal definida na eclosão dum afloramento, a Amazônia é toda retalhada de cordas líquidas. O olhar que a descortinasse do alto, abrangendo esses mil veios dágua, teria a impressão de ver uma cabeça formidável emergindo do fundo do vale - gigantesca Medusa - cabeleira branca, frondosa e desgrenhada em curvas de serpentes. Fios que correm em busca da planície, é por eles que a atividade civilizada vai alargando o âmbito da sua influência, na marcha incessante do explorador, atrevido, vindo do levante ou ido do poente.

A história da Amazônia, desde a conquista, nos séculos XVI, XVII e XVIII, escreve-se ao longo das artérias fluviais, na orla dos paranás, dos furos, dos igarapés. A grande caravana de batedores do sertão, geólogos, astrônomos, botânicos, hidrógrafos, etnólogos, precedidos de piratas e catequistas, de bandeirantes e generais, subidos do mar ou descidos das cordilheiras, só penetra a Hileia, embarcada.

Lede os relatórios das expedições, as monografias dos naturalistas, as pastorais dos missionários, as ordens do dia dos capitães. É a remo e a vela que viajam floresta a dentro. Varam a hinterlândia e desembocam no Atlântico a bordo. A visão panorâmica da terra,
do céu
, da selva é colhida das águas, no banco da canoa, no paneiro da igarité, na tolda da galeota, à sombra dos latinos. A cruz e o cronômetro, a miçanga e o fuzil iam e vinham no porão dos transportes.

Recorram-se-lhe os pontos estratégicos, os lindes fronteiriços e a sua crônica militar, dramática e sangrenta, reponta, como as iaras e os botos encantados, do seio potâmico: é estampada na orilha dos caudais. Pelas margens, afirmando a posse da gleba, as cidadelas e os redutos. No Rio Branco o Forte de S. Joaquim olhando a Guiana e a Venezuela; no Rio Negro o Forte de Marabitanas olhando a Colômbia; no Rio Solimões o Forte de Tabatinga olhando o Peru; no Rio Guaporé o Forte do Príncipe da Beira olhando a Bolívia. Macapá, numa ribanceira, vigiando o arquipélago, nos litorais da foz do Xingu e do Paru, praças de guerra guardando os surgidouros; Gurupá, eriçada de peças, policiando o fundo do estuário; Santarém, guarnecida por um forte, fechando o Tapajós; Óbidos, a cavaleiro de verde colina, trancando a garganta do Amazonas; Castelo, na Baía do Guajará, defendendo Belém.

Toda uma teoria de muralhas, fossos, parapeitos, barbacãs, casamatas, baterias, canhões, montada nas faixas ribeirinhas, atesta o valor das vias movediças. Dança-se, caça-se, reza-se, namora-se, peleja-se à flor das águas. A montaria é o cavalo; o remo a rédea. Daí a influência do gaiola na vida amazônica. Ele é o bonde, ele é o carro, ele é a locomotiva. Veio da ubá indígena, através de cem feitios, ao navio regional de hoje, elegante, forte, veloz, manobreiro, com fábrica de gelo, luz elétrica, dois mastros, pequeno calado. Da elevada superestrutura, desenvolvidas obras mortas, dois, três conveses, camarotes nas amuradas, adveio-lhe o apelido irônico e pitoresco de gaiola. Existem de roda na popa e nos flancos; de uma e duas hélices; de cem, duzentas, quinhentas, oitocentas, mil toneladas de deslocamento; de três, cinco, oito, doze pés de calado; de madeira e de ferro, sujos e limpos, feios e belos; construídos na Inglaterra, na Holanda, na Dinamarca, em Santarém, na América do Norte.
Sobem dos ancoradouros de Belém, nas orlas marítimas, às vizinhanças andinas, nas zonas alpestres. Penetram, furam, remexem a bacia. Quando o preço da borracha é animador, marcham aos vinte, aos trinta, penachando, pintados de branco e de preto, de cinzento e de amarelo.

A vida, a bordo, revela tudo que há de mais imprevisto e curioso. No primeiro convés, ora de teca ora de aço, além dos guinchos, escotilhas, cozinha, rancho, camarotes de oficiais, casa das máquinas, aboletam-se cargas e quadrúpedes, como sal, querosene, gasolina, tijolo, telha, carneiros, cabras, porcos, burros, bois e vacas. Depois disto acondicionado, carregando baús, trouxas, sacos, embarcam os passageiros de terceira classe, nordestinos contratados para o corte da seringa, e ali se agasalham na maior promiscuidade, amarrando as redes ao lado e por cima dos animais até fazerem um denso trançado, que mal deixa passar a tripulação para a manobra.

Cem, duzentos, trezentos indivíduos magros, hirsutos, sujos, pardavascos; as crianças nuas; as mulheres, de saia, casaco, chinelas e cachimbo ao queixo; os homens de chapéus de carnaúba, calça e camisa, alpercatas, bentinho ao pescoço, pajeú à cinta. Falam cantando e chamam os filhos bichinhos. Assim que se empilham naquele pequeno espaço úmido e maculado, ouvem-se as notas fanhosas das harmônicas e o soluço sertanejo das violas.

No segundo convés - as cabines, o bolinete, a máquina do leme, a copa, o bar, a despensa, os banheiros, as sentinas, a caixa da fumaça, as mesas de refeições. Aí se acomodam o comandante, oficiais de catavento, criadagem, patrões, coronéis, aviados e representantes de casas exportadoras. Em cada camarote de dois e quatro beliches, oito, dez, doze pessoas que os atravancam de cestos, caixas, molhos de tabaco, máquina de café, sacos de roupa, paneiros, cães, gatos.

Fora, tumultuosamente, bagagens sobre estrados, barricas de bolacha, frasqueiras de cachaça, potes de mel, latas de biscoitos, canastras de verduras. Pendurados, à ré, alguns quartos de carne para
mant
imento. Igualmente ao que vai por baixo, as redes armadas dominam. Na última tolda - capoeiras de criação, tabuado, e, dentro dos botes, baldes de folha, plantas, bilhas e filtros de barro. Ao largarem os cabos dos cais, a mareta lambe-lhes o contrafeito.

Deixam o porto completamente entupidos e seguem até o Farol de Cutijuba, onde aguardam a madrugada para atravessar a Baía de Marajó. Dias depois, nas fazendas pastoris do Baixo Amazonas, temerariamente, recebem vinte, trinta reses para o consumo. Continuam a derrota embarcando lenha para as fornalhas e cortando capim para o gado, de acordo com a necessidade. Em noites escuras chocam-se aos madeiros que vogam à tona, entortam os eixos, racham as esferas, quebram as palhetas. Fundeiam e encostam a grinalda em terra. A guarnição do fogo mergulha a oito, dez pés e repara a avaria, num esforço heroico, correndo o risco dum ataque de piranhas, piraíbas e jacarés.

Suspendem. Por uma tarde de sol impiedoso, em virtude de pontas de cigarros e fósforos atirados imprudentemente, ou de faulhas caídas da chaminé, os garrafões empalhados, álcool ou cachaça, expostos ao ar sobre o convés, incendeiam-se; e o fogo lavra de repente, as chamas devoram tudo, lambendo, enroscando-se, carbonizando e deixando apenas o casco. O Tabatinga, o Lauro Sodré e o S. Luís perderam-se assim. (segue na 2ª parte)

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