Raymundo Moraes, 1935 |
Transcrevo a segunda parte do
capítulo O Gaiola, inserto em Na planície amazônica (1926), o livro de
Moraes que despertou a admiração de tantos, não apenas de governantes e
leitores sobre a Amazônia, mas igualmente de casas editoras do Sul do país.
O Gaiola (final)
No verão [os gaiolas] furam, quando navegam nos rios secos, rasgam as
chapas em âmagos fincados no álveo, em pedras soltas no leito, e vão a pique ou
salvam-se milagrosamente alcançando as praias. Forçados pelas vazantes
imprevistas, nos longínquos afluentes, navegam à noite, envoltos na escuridão
com dois fortes projetores à proa, nas
bochechas, pouco acima da linha dágua, e rompem a treva apitando, guinando,
bufando, cercados de nuvens de borboletas e de insetos atraídos pelos focos
luminosos.
Nas inundações, enfiam-se na mata alagadiça e ficam presos muitas horas,
apertados nos caules do arvoredo, cobertos de ramos e folhas, de lianas e
parasitas, como divindades silvestres.
Outros, verdadeiros hospitais ambulantes, levam no bojo a gripe, a
tuberculose, a coceira, o sarampo. Súbito há um alarme, é a varíola que se
manifesta. Tocam no primeiro barracão para deixar o doente. A gente de terra
protesta, não consente, e, armada de rifle, ameaça. Isolam, então, o desgraçado
na última tolda, debaixo de encerados transformados em tendas de campanha.
Breve, porém, a bexiga empesta o vapor e surgem os casos fatais. As vítimas vão
ficando enterradas pelos barrancos, fora do conhecimento dos moradores
ribeirinhos; e a epidemia propaga-se das margens para o interior da
hinterlândia, dizimando e arrasando os seringais do centro, atingindo e
invadindo as malocas do silvícola.
Invariáveis e inconstantes como são as cheias nas cordas remotas, há anos
ali de muita água e há anos de pouca, surpreendendo sempre o navegante com os
fenômenos potamológicos mais inopinados. Quem escreve estas linhas, comandando
o Brito em 1913, gaiola de cento e cinquenta pés, atracado
ao porto Guanabara, derradeiro ponto acessível no laco, afluente do Purus, só
ali ficou vinte e cinco dias em seco. Duas vezes teve a ilusão de regressar e
em ambas perdeu o repiquete. O
rio começava a encher violentamente às seis horas da tarde. Os cabos de arame
passados para terra pareciam cordões de viola. A amarra de lançante, rasgando
as águas, lembrava um espigão de ferro. Do talhamar subia o ruído marulhante e
falso da embarcação que navegava, tal a força da corrente: cinco, seis, sete
milhas. Rápidos, rumo da foz, passavam de bubuia galhadas, tronqueiras, ilhas
de capim, canoas alagadas, cisco. O vapor, apesar dos viradores
dobrados, assemelhava-se a um cavalo inquieto e preso: encostava, abria,
tesando e brandeando as espias. Na volta da meia-noite, a escala a prumo,
fincada na ribanceira, marcava seis metros acima do nível
observado ao por do sol. Ordem de ativar fogos. Preparativos de partida para o raiar do dia. Pois
bem, às seis da manhã o navio não flutuava mais. Perdera-se o momento, o repiquete fugira no tempo vertiginoso de poucas horas.
Os gaiolas avançam tanto em determinadas viagens, que são obrigados a descer de popa, ao sabor do
caudal, desviando-se das pontas de tabatinga, dos torrões, dos salões, dando adiante, atrás, parando, largando o ferro passando espias nas margens. Afinal encontram a boca de um igarapé, metem a popa e viram rio abaixo. Ao evoluírem, partem os gualdropes, empenam a porta do leme, arrancam os pés-de-galinha, entopem os ralos dos injetores, quando não atravessam e ficam esperando o inverno
vindouro.
Mas não há fugir das manobras sensacionais e arriscadas, fora de qualquer tabela, aproveitando os acidentes e contornos topográficos, das paredes do canon, os remansos, as corredeiras, os sangradouros, os estoques fluviais.
Felizes muitas vezes, sem avarias de monta, retornam no rabo dos repiquetes, evitando com essa precaução anteceder-se ao grosso das enxurradas, que avolumam momentaneamente os remotos cursos dágua, além de ficarem a salvo dos paus
flutuantes, arrastados na
testada das enchentes. E singram carregados de goma, abarrotados de seringueiros de saldo. Entretanto, nas derradeiras seções dos tributários, ainda recebem, em vastos paióis provisórios sobre a coberta, farta quantidade de castanha, bertholletia excelsa, e chegam a Manaus com os embornais mergulhados. Amarram nas boias recordando museus zoológicos, cheios de araras, papagaios, periquitos, macacos, jacamins, mutuns, tartarugas e jabutis.
Livro de Raymundo Moraes, publicado em Manaus, em 1924 |
Da capital amazonense para a jusante, em Santarém, Óbidos, Monte Alegre, Prainha, recebem cachos de banana, paneiros de tomate, cuias pintadas, garrafadas de muirapuama, melões, melancias, atas, laranjas, abacates, mel de abelha, queijos, fora os olhos de botos e os irapurus, trabalhados pela pajelança, e que atraem a felicidade no comércio, no jogo e no amor.
Ao vingarem os Estreitos de Breves, livres da última escalada, próximos ao ponto terminal, transmitem a impressão de navios-piratas, vindos de uma pilhagem bárbara, tanto e díspares são os bichos e as coisas amontoadas sob as mesas, amarrados aos pés de carneiros, presos aos balaústres, guardados nos banheiros, escondidos no rancho. O aspecto anárquico e cigano dos gaiolas que trafegam os altos rios, modifica-se, todavia, nas embarcações desse tipo nas linhas fixas
e baixas, onde se observa mais ordem,
limpeza, conforto e regularidade.
Em todo o vale do Amazonas, sem incluir a Estrada de Ferro de Bragança, ligando a zona do Salgado, no Pará, e ainda a via-férrea do Alcobaça, vencendo a zona de cataratas do Tocantins, com oitenta quilômetros já
em tráfego, só existe a ferrovia Madeira-Mamoré, com trezentos e sessenta e seis quilômetros de trilhos para salvar a região encachoeirada
dos cursos que lhe dão o nome, desdobrada entre Porto Velho e Guajará-Mirim [RO], este na fronteira de Mato Grosso com a Bolívia.
Ao Amazonas propriamente, dessa estrada, cabem apenas oito quilômetros e tanto de linha, os únicos existentes em todo o seu
território.
De sorte que a bacia imensa, por uma fatalidade geográfica, permanece à mercê do transporte fluvial, que vai da canoa escoteira ao gaiola de várias tonelagens. Alguns varadouros atravessando as mesopotâmias, e que ligam a rede hidrográfica pelo deserto, principiam a surgir, concretizando a ideia da transacreana, entrevista por Euclides da Cunha, a fim de unir o sertão. Até agora, no entanto, somente o gaiola domina o tráfego da desmedida planície equatorial.
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