CATANDO PAPÉIS & CONTANDO HISTÓRIAS

segunda-feira, julho 18, 2011

Ildefonso Pinheiro (II)


por Francisco Bacellar,

pai do poeta Luiz Bacellar, publicado no livro
Uma Vida... (Manaus: Editora Sérgio Cardoso, 1963)

Uma vida..., seleção de crônicas publicadas no Jornal do Commercio, de Manaus, representa, sob o aspecto de reminicências do autor, a cristalização de um passado de lutas firmado dentro de uma bela tradição de tenacidade, civismo e honestidade que honram e dignificam sobretudo a sociedade que testemunhou e ainda assiste o exemplo edificante do roteiro traçado, palmilhado e rememorado pelo autor. (da orelha do livro)


Sede do Jornal do Commercio,
na avenida Eduardo Ribeiro

Ildefonso sempre teve a sua reserva. Cumpridor perfeito das suas obrigações e possuidor de alto senso de responsabilidade não admite, por isso, imposições descabidas nem excesso de autoridade; quando isto acontece o "faça favor, tire a minha conta" resolve a situação, isto numa época em que perder um emprego consistia a maior calamidade para quem dele dependesse.

Vencendo as maiores dificuldades procura se instruir e o faz graças a existência de um homem a quem Deus concedeu o dom da benemerência: Alfredo Garcia, com a aparência de um filósofo hindu, trazendo em si a sabedoria de um Buda, a paciência, a obstinação e a renúncia de um Gandhi e a predestinação de um Tagore, sem ceder à canseira, não buscando o conforto, não aspirando o poder pecuniário nem a gratidão humana, na sua "Santo Antonio Comercial School" ensina de manhã à noite.
Procuram-no os humildes, os necessitados convictos, os empregados que não dispõem de tempo. Recebe, ali, Ildefonso, as bases com as quaest, autodidata, pode adquirir os variados conhecimentos que dia a dia vai aprimorando.

Tem início, então, a consolidação do pequeno homem de negócio, do economista em potencial; dura prova, porém, se lhe depara, consequência natural dos seus impulsivos "faça favor, tire a minha conta". Ildefonso torna-se estivador do porto, no serviço mais pesado de então para o qual escolhida turma de portugueses alentados é empregada. A desistiva do carvão coke é feita em cabaças de vime que, formada a fila, -- jogada de mão em mão desde o ponto do enchimento ao do despejo. O recém-estivador, o intruso era franzino, a enfibratura, porém, era rija.

A princípio, os gigantes desdenhavam do pequeno colega e tratam de testá-lo. Se não bastasse ser-lhe o soco das cabaças propositadamente maior a falta de prática do novato não evitava que as pontas de talas despregadas dos vasilhames rasgassem-lhe a carne dos braços. A resistência e a obstinação do neófito tocaram aquela gente simples e nobre. A mofa transmuda-se em admiração.

Depois desta prova de fogo o estivador passa à pracista. Nesta profissão vence galhardamente. Outro impulsivo "faça favor, tire a minha conta" joga-o para o Ideal Clube onde vou encontrá-lo no posto de mordomo. Na sua convivência com os gentis-homens do Ideal faz ele o seu estágio. Prepara-se para a escalada decisiva aos píncaros o que lhe foi relativamente fácil.

Rara virtude lhe orna o espírito. A de servir e servir bem, "em desdouro para si próprio, sem humilhação para quem dele precisa. Conta-se entre os seus amigos, grandes e pequenos, humildes e poderosos, pobres e ricos, cultos e não cultos, para ele só há distinção na virtude que os exalce. Também rara felicidade lhe acompanha: a de jamais ter tido necessidade de recorrer ao irrecorrível a quem quer que seja.

Presto, vemô-lo na A Tropical, onde vencendo inveja, derrubando preconceitos, mudando tradições e costumes, transformando, aliás, a feição de uma época, torna-se comerciante. Ali dá largas ao seu espírito caritativo e mecenas das artes e das letras, lhe vale ser armado "cavalheiro" da mais restrita ordem que jamais existiu.
Quatro membros apenas, não violentos nem vingativos como os do Apocalipse, mas "espíritos fogosos e sonhadores”. O agraciador foi um poeta em nome de "O Satã". No tempo de A Tropical a minha cruz foi tareada com pesadíssima sobrecarga de chumbo. Carrega-Ia tornou-se-me bem penosa.

Ildefonso constituiu-se meu cirineu; exigiu que todos os domingos fosse com ele almoçar. Os acepipes eram preparados pelas suas próprias mãos. O meu lugar, o de honra na cabeceira da sua mesa.

Depois de A Tropical, a sua plena situação econômica e financeira é atingida. Torna-se proprietário e acionista da Eletroferro em pura e honesta forma sobre a qual nem ao menos paira qualquer suspeita. (segue)


O financista em estado latente ensaiava os passos para se desenvolver. Nunca esteve desempregado. Não podia estar, era do seu trabalho que provia o seu sustento. Econômico por índole, por precaução e por imposição da natureza do seu trabalho, pois, folga, só raramente em alguma tarde de um domingo.

Um comentário:

  1. Importante e histórica postagem, seu blog vale um instituto de cultura amazônica inteiro!

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