CATANDO PAPÉIS & CONTANDO HISTÓRIAS

sábado, maio 30, 2020

TEATRO NACIONAL DE COMÉDIA EM MANAUS


Zanzando pelas páginas de Ramayana de Chevalier, inseridas no extinto jornal A Gazeta, compartilhei esta que apregoa a arte teatral em Manaus. O texto é mais que cinquentenário, redigido quando o autor servia ao governo de Mestrinho, em 1961.
Relata a visita a Manaus do Teatro Nacional de Comédia (TNC), que existiu entre 1956-67. O elenco era composto por vários atores, a maioria se tornou bastante conhecida ao integrar a TV Globo. É conveniente observar a apreciação de Ramayana sobre cada ator e atriz.
Duas notas próprias: a publicação aconteceu em 14 de novembro de 1961; e tomei a iniciativa de acrescentar alguns dados entre [colchetes].
 
Detalhe do artigo (A Gazeta, 14 nov. 1961)
  
José Renato Pécora
Só há um lugar onde o homem se sente completamente puro: na ribalta. Ali, ele abjura de tudo, entrega tudo de si mesmo, dá-se à Arte, vivendo outras vidas, sem egoísmo. Quando o artista é completo, quem o desperta do seu sonho é a tempestade de aplausos. E tão complexo, tão misterioso o Teatro, que envolve, na sua teia, tudo o que se aproxima dele, o mundo que lhe entra em contato. Muito antes do pano de fundos subir, muito antes do primeiro ator aparecer em cena, já começou o Teatro. O primeiro espectador leva consigo o segredo do Teatro. O silêncio, os cochichos respeitosos, a ansiedade, a luz faiscante que corre de olhar em olhar, antes da encenação, a borboleta nervosa e ágil que frequenta, antes do pano de fundo subir, muito antes do primeiro ator, tudo isso é o Teatro. (...)
Quando Jesus, esfarrapado e sangrento, batido pela ignorância, compareceu diante de Pilatos e. em silêncio, mirando-o no fundo dos olhos, deixou de responder o que era a Verdade, obrigando-o a baixar a vista e a ir lavar as mãos, fez o Teatro, no seu sentido mais puro e mais alto: a interpretação da própria Vida.

Milton Moraes

Um país sem estímulo ao Teatro, é um país morto, clamava Garcia Llorca. Em todo Brasil, o Teatro sofre. Laura Suarez acusava o público, de “desprezar o teatro”. João Augusto, crítico, vendo a vida miserável que levava Armando Braga, depois de uma existência dedicada à Arte teatral, gritava, possesso: “Antes ser porteiro de bordel!” E nisso não estava sozinho. Com ele estava William Faulkner, que a frase é dele. Mas o Amor salvará o Teatro, ou morrerá com o Teatro. O mundo, condenado ao fogo, no desígnio das escrituras, queimará a última peça, com o corpo do último homem.
Lícia Magna
Visita-nos agora, o Teatro Nacional de Comédia [TNC, 1956-67]. Um punhado de campeões, emocionados diante da pureza da Amazônia, seu legítimo palco. Comanda-os, essa figura séria e admirável que é José Renato [Pécora, 1926-2011]. É um veterano, que sabe. Olhou para o Brasil, para a sua incipiência, para o tremendo esforço dos seus autores e dos seus atores, dedicou-se à exaltação da cena brasileira. E o faz com retidão, talento e honestidade. Vem levando, os seus restos de deuses, por esse agreste afora, deliciando plateias, pondo um termômetro no sovaco do Brasil e os ouvidos sobre o bater do seu imenso coração.


Com ele novos e antigos. Milton Moraes [1930-93] um brasão novo, afirmando uma técnica. Ferreira Maia é o próprio teatro nacional, desfazendo-se em amor e em glória por todo este país. Um dia estacará, docemente, com o seu olhar tão profundamente humano e o seu sorriso tão pródigo, e, nesse dia, sua voz estará musical como a dos anjos, despedindo-se de nós, da pátria, do destino. Oswaldo Louzada [1919-2008], sempre o gentleman, apurado, à flor da pele, flor de um Rio de Janeiro que se desfigura com os arremessos da civilização. [Angelo] Rodolfo Arena [1910-80], sóbrio e preciso, humano, sobretudo humano, um reflexo artístico do seu peito estuante, onde se têm representado dramas sentidos e profundos. Magalhães Graça, honesto em sua representação, um guardador de tipos, que ele tira da sacola quando quer. Ivan Cândido, tão jovem e tão natural, evocando a época em que, de pele lisa, Procópio, meu amigo, embarcava para a Europa a fim de receber as palmas de outras mentes. José Damasceno, bom faiscador de papéis, afirmação inteligente da gente brasileira. Sérgio Cavalcante e Antônio Ganzarolli [1932-1999], que mal começam a sofrer da grande moléstia artística e já se comportam tão bem e com tanta eficiência. Beatriz Veiga leve, sugestiva, natural, com uma expressão que é sua e basta. Yolanda Cardoso [1928-2007], forte, entranhada nos tipos como uma unha num músculo querido, compondo em corpo e em alma as suas personagens. [Alcina] Lícia Magna [1909-2007], intérprete comedida e sensata, com largo tirocínio de teatro, que sabe onde moram as lágrimas ocultas e os sorrisos angelicais da vida do artista. Maria Esmeralda marcou. Deve subir ainda muitos degraus, com o seu talento. Está dançando em torno da chama, como as libélulas que amam ao fogo e desprezam o seu poder. (...)


O Serviço Nacional do Teatro lavrou um tento com essa viagem. Em “Pedro Mico”, em “A Joia” e em “Boca de Ouro”, o elenco esteve à altura. Milton brilhou nos dois tipos principais da primeira e última. Yolanda e Esmeralda, também. Nélson Rodrigues diz que a arte escouceia e por isso é, a pinta assim. O gênio de Nélson pulsa com a época que ele vive. Faz Teatro, do melhor, como Callado, “Pedro Mico”, molhando a pena no estrumal da realidade. Nós vivemos em carne viva. Os eufemismos perderam a sua vez. O que se ouve, não pode ser embrulhado em papel celofane. Se o Teatro é um ato de amor, como quer Barrault, então que se o ame com lealdade, em crispações, sentindo o sangue, o suor e as lágrimas dos seus assuntos.
Manaus ficou feliz com a visita do Teatro Nacional de Comédia. Na geografia, parecemos no fim do mundo. Mentira. O Brasil é tão grande, e tão bom, e tão belo, que é tudo isso até os últimos limites dos seus cabelos, na selva amazônica. Gente enternecedora e amiga, vocês estão em casa. Façam de nossa taba, uma extensão do imenso lar humano que é o teatro universal. +++

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