Zanzando pelas páginas de Ramayana de
Chevalier, inseridas no extinto jornal A Gazeta, compartilhei esta que apregoa
a arte teatral em Manaus. O texto é mais que cinquentenário, redigido quando o
autor servia ao governo de Mestrinho, em 1961.
Relata a visita a Manaus do Teatro Nacional
de Comédia (TNC), que existiu entre 1956-67. O elenco era composto por vários
atores, a maioria se tornou bastante conhecida ao integrar a TV Globo. É conveniente
observar a apreciação de Ramayana sobre cada ator e atriz.
Duas notas próprias: a publicação
aconteceu em 14 de novembro de 1961; e tomei a iniciativa de acrescentar alguns
dados entre [colchetes].
José Renato Pécora |
Só há um lugar onde o homem se sente completamente puro: na
ribalta. Ali, ele abjura de tudo, entrega tudo de si mesmo, dá-se à Arte,
vivendo outras vidas, sem egoísmo. Quando o artista é completo, quem o desperta
do seu sonho é a tempestade de aplausos. E tão complexo, tão misterioso o
Teatro, que envolve, na sua teia, tudo o que se aproxima dele, o mundo que lhe
entra em contato. Muito antes do pano de fundos subir, muito antes do primeiro
ator aparecer em cena, já começou o Teatro. O primeiro espectador leva consigo
o segredo do Teatro. O silêncio, os cochichos respeitosos, a ansiedade, a luz
faiscante que corre de olhar em olhar, antes da encenação, a borboleta nervosa
e ágil que frequenta, antes do pano de fundo subir, muito antes do primeiro
ator, tudo isso é o Teatro. (...)
Quando Jesus, esfarrapado e sangrento, batido pela ignorância,
compareceu diante de Pilatos e. em silêncio, mirando-o no fundo dos olhos,
deixou de responder o que era a Verdade, obrigando-o a baixar a vista e a ir
lavar as mãos, fez o Teatro, no seu sentido mais puro e mais alto: a interpretação
da própria Vida.
Milton Moraes |
Um país sem estímulo ao Teatro, é um país morto, clamava Garcia Llorca.
Em todo Brasil, o Teatro sofre. Laura Suarez acusava o público, de “desprezar o
teatro”. João Augusto, crítico, vendo a vida miserável que levava Armando
Braga, depois de uma existência dedicada à Arte teatral, gritava, possesso: “Antes
ser porteiro de bordel!” E nisso não estava sozinho. Com ele estava William
Faulkner, que a frase é dele. Mas o Amor salvará o Teatro, ou morrerá com o
Teatro. O mundo, condenado ao fogo, no desígnio das escrituras, queimará a
última peça, com o corpo do último homem.
Lícia Magna |
Visita-nos agora, o Teatro Nacional de Comédia [TNC, 1956-67].
Um punhado de campeões, emocionados diante da pureza da Amazônia, seu legítimo
palco. Comanda-os, essa figura séria e admirável que é José Renato [Pécora,
1926-2011]. É um veterano, que sabe. Olhou para o Brasil, para a sua incipiência,
para o tremendo esforço dos seus autores e dos seus atores, dedicou-se à exaltação
da cena brasileira. E o faz com retidão, talento e honestidade. Vem levando, os
seus restos de deuses, por esse agreste afora, deliciando plateias, pondo um termômetro
no sovaco do Brasil e os ouvidos sobre o bater do seu imenso coração.
Com ele novos e antigos. Milton Moraes [1930-93] um brasão
novo, afirmando uma técnica. Ferreira Maia é o próprio teatro nacional,
desfazendo-se em amor e em glória por todo este país. Um dia estacará,
docemente, com o seu olhar tão profundamente humano e o seu sorriso tão
pródigo, e, nesse dia, sua voz estará musical como a dos anjos, despedindo-se
de nós, da pátria, do destino. Oswaldo Louzada [1919-2008], sempre o gentleman,
apurado, à flor da pele, flor de um Rio de Janeiro que se desfigura com os arremessos
da civilização. [Angelo] Rodolfo Arena [1910-80], sóbrio e
preciso, humano, sobretudo humano, um reflexo artístico do seu peito estuante,
onde se têm representado dramas sentidos e profundos. Magalhães Graça, honesto
em sua representação, um guardador de tipos, que ele tira da sacola quando
quer. Ivan Cândido, tão jovem e tão natural, evocando a época em que, de pele
lisa, Procópio, meu amigo, embarcava para a Europa a fim de receber as palmas
de outras mentes. José Damasceno, bom faiscador de papéis, afirmação
inteligente da gente brasileira. Sérgio Cavalcante e Antônio Ganzarolli [1932-1999],
que mal começam a sofrer da grande moléstia artística e já se comportam tão bem
e com tanta eficiência. Beatriz Veiga leve, sugestiva, natural, com uma
expressão que é sua e basta. Yolanda Cardoso [1928-2007], forte,
entranhada nos tipos como uma unha num músculo querido, compondo em corpo e em
alma as suas personagens. [Alcina] Lícia Magna [1909-2007],
intérprete comedida e sensata, com largo tirocínio de teatro, que sabe onde
moram as lágrimas ocultas e os sorrisos angelicais da vida do artista. Maria
Esmeralda marcou. Deve subir ainda muitos degraus, com o seu talento. Está
dançando em torno da chama, como as libélulas que amam ao fogo e desprezam o
seu poder. (...)
O Serviço Nacional do Teatro lavrou um tento com essa viagem. Em “Pedro
Mico”, em “A Joia” e em “Boca de Ouro”, o elenco esteve à altura. Milton
brilhou nos dois tipos principais da primeira e última. Yolanda e Esmeralda,
também. Nélson Rodrigues diz que a arte escouceia e por isso é, a pinta assim.
O gênio de Nélson pulsa com a época que ele vive. Faz Teatro, do melhor, como
Callado, “Pedro Mico”, molhando a pena no estrumal da realidade. Nós vivemos em
carne viva. Os eufemismos perderam a sua vez. O que se ouve, não pode ser embrulhado
em papel celofane. Se o Teatro é um ato de amor, como quer Barrault, então que
se o ame com lealdade, em crispações, sentindo o sangue, o suor e as lágrimas
dos seus assuntos.
Manaus ficou feliz com a visita do Teatro Nacional de Comédia. Na geografia,
parecemos no fim do mundo. Mentira. O Brasil é tão grande, e tão bom, e tão
belo, que é tudo isso até os últimos limites dos seus cabelos, na selva amazônica.
Gente enternecedora e amiga, vocês estão em casa. Façam de nossa taba, uma
extensão do imenso lar humano que é o teatro universal. +++
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