Renato
Mendonça *
RenatoMendonça, 1968 |
Eu
acabara de aprender a ler e já me inscreveram no catecismo, preparando-me para
a Primeira Comunhão, hoje denominada de primeira eucaristia.
Ao
tempo, aquele ato era como se fosse um casamento consigo mesmo. Havia inúmeras
aulas, antecipando a cerimônia, pregando
doutrina exacerbada como para fazer uma lavagem cerebral no garoto, de
forma a deixá-lo catequizado plenamente e pronto para comungar pela primeira
vez.
Era
necessário, entretanto, que o menino no dia anterior fosse ao confessionário,
para consultar o padre e destilar aquilo que suspeitasse que fosse pecado. Na
falta de melhor esclarecimento sobre os parâmetros da falta, era comum enumerar
tudo, até pensamentos fúteis. Ainda bem que éramos criança, de poucos recursos
e poucas oportunidades de cometer pecado. Ainda mais, vivendo numa cidade
pacata e numa época sem tantos apelos veiculados pelos meios de comunicação.
Chegou
finalmente o dia, vesti as roupas brancas; a destoar, apenas os sapatos pretos.
Mas era permitido o uso, pela diocese, porque sapato na cor branca seria um
desperdício, um excesso sem outra utilidade.
De
catecismo na mão, em forma de missal, também na cor branca, e uma vela fina e
longa, enfeitada com uma fita, com alguns dizeres em latim, entrei na igreja em
direção ao altar. A camisa por dentro da calça — ainda curta — dava um ar mais
eloquente ao evento. A roupa bem engomada — de todos — dava o tom do evento
católico. Cabelos bem curtos e levemente besuntados de brilhantina Glostora combinavam com as unhas
cortadas rentes e limpas, preparadas especialmente para a ocasião.
A
compartilhar comigo, inúmeros garotos da minha idade, que estudaram com afinco
o catecismo e sabiam, na ponta da língua, que respostas deveriam ser ditas na
cerimônia. Segundo o catolicismo esse evento é a confirmação do Batismo. E eu
julgava mais importante porque dessa primeira cerimônia ninguém se lembra.
Vi
a multidão de pessoas que se acotovelavam nos primeiros bancos na igreja do
Educandos; alguns apenas para assistir a missa que acompanhava a cerimônia;
outros para admirar seus pupilos junto ao altar, sendo doutrinados na religião.
O
cônego Antônio Plácido, muito cultuado pelos fiéis, pela sua sabedoria e ares
de beato, se postou para gerir a cerimônia. Os fiéis admiravam seus sermões nas
missas dominicais. Era um padre bem preparado, frequentava os lares, falava a
língua do povo, e usava de metáforas engraçadas para explicar com facilidade os
meandros das parábolas do cristianismo, e o ensinamento das práticas
religiosas.
No alto, matriz de Educandos, 1975 |
Colocamo-nos
junto ao altar, enquanto o celebrante fazia de modo automático e com muita
prática o ritual de encenação da Eucaristia. Num determinado momento, tivemos
que nos ajoelhar e baixar a cabeça. Nesse instante, eu me desequilibrei e pus a
mão esquerda no degrau forrado com um tapete vermelho, enquanto o cônego
acidentalmente pisou sobre ela.
Quis
dar um grito ou alertá-lo sobre o ocorrido, mas como era um instante de silêncio
total, me contive e aguentei firme, enquanto o padre elevava o cálice aos céus.
O instante me pareceu uma eternidade. A mão esmagada pelo peso do obeso
sacerdote ficou quase adormecida. Quando ele se deslocou senti um alívio e uma
dor latejante. Com fé, consegui me concentrar no restante da cerimônia apesar
do incômodo.
Enquanto
minha mente juvenil alimentava a certeza de que aquilo fora mais uma provação
na vida, um castigo de Deus por eu ter cometido um pecado no dia anterior: quis
ver, pela fresta, a “priminha” Maria de Nazaré, fazendo xixi no banheiro. Vinha
à mente igualmente que o castigo fora injusto: eu nem estava na Igreja de Nossa
Senhora de Nazaré.
(*) escrito em 29 jun. 2009, quando o autor completou 47 anos
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