CATANDO PAPÉIS & CONTANDO HISTÓRIAS

domingo, julho 05, 2020

L. RUAS: LEITURA COMPARTILHADA

L. Ruas (1954)

Ontem, o Portal Entretextos promoveu mais um Círculo Literário Virtual: nomeado de Leituras compartilhadas: a poesia de L. Ruas, poeta amazonense morto em 2000. Escrevi para participar do evento o relatório aqui postado.

20 ANOS SEM O CLOWN

Luiz Augusto de Lima Ruas,
Padre Ruas, para a Igreja Católica, e, L. Ruas, para a literatura amazonense

1.      Sua morte aconteceu em 1° de abril de 2000, neste ano, a pandemia impediu uma melhor lembrança.
2.     Conheci padre Ruas no Seminário São José, em 1956, quando ali cheguei. Ele, jovem padre, de batina branca e de cabeleira esvoaçante, era professor dos alunos de teologia, de filosofia e dos iniciantes. Seu currículo eclesiástico começou a construir no seminário em Manaus, adiante, passou pelo da Prainha, em Fortaleza, e pelo do Rio Comprido (RJ). Ao fim, retornou a Manaus, onde foi ordenado sacerdote em outubro de 1954.
3.     Sua competência com as letras ele demonstrou bem cedo. Deu início antes da ordenação sacerdotal, publicando no extinto Universal, tabloide dominical da Igreja, diversos artigos sem obedecer a qualquer periodicidade. Ao menos um se tornou bastante polêmico: A inutilidade do padre (outubro de 1955). Após a publicação dessa “heresia”, seu concurso no periódico foi escusado. Todavia, essas publicações serviram para ele cinzelar sua marca literária: L. Ruas.
4.    Em 1958, L. Ruas produziu o Aparição do Clown, um longo poema religioso, de penosa interpretação, daí os contados intérpretes. Topei com apenas cinco. O parágrafo final do prefaciador, desembargador André Araújo, católico sob todos os perfis, saudoso “bispo leigo” da catolicidade de Manaus, orientava o leitor:
Falando desse mundo que é poético, no universo, o padre Luiz Ruas publica algo de profundo, de excelso, de magnífico. Que o entendam os que mergulharem no profundo de sua dialética; que tenham ouvidos aqueles para quem o poema é dirigido; que vejam os olhos d’alma daqueles que devem ver os símbolos e os mistérios que estão contidos nos versos áureos do imortal poeta de Aparição do Clown.5.     Na ocasião, recebi de L. Ruas um exemplar. Nada entendi, e ainda hoje me atormenta sua leitura. Todavia, verbalizei entre colegas uma “crítica”: a de que o poema fora escrito em toda sua extensão com letras minúsculas. Afinal, aprendia que a letra maiúscula deve ser empregada nos nomes próprios, no início da frase e depois do ponto (.).
6.    Outra ressalva sobre este livro. A capa, elaborada pelo artista Óscar Ramos, com quem conversei sobre, foi concebida de forma artesanal. Basta observar as letras, que foram recortadas na tesoura (photoshop da época). Não obstante, a capa marcou uma nova quadra na editoração de livros na cidade.
7.     Ruas participava, então, ativamente da vida cultural de Manaus. Escrevia em jornais, atividade fácil de exercer. Estava em A Crítica, com a coluna Ronda dos Fatos, e em O Jornal, na página do Clube da Madrugada.
8.    Eclesiástico de distintas atuações: além do múnus sacerdotal, era professor dos principais colégios, com relevância do Instituto Christus, do qual fora um dos fundadores; e professor de Psicologia e Sociologia na Universidade Federal do Amazonas.
9.    Tem mais: Ruas conhecia Cinema e Teatro, possuía ótima voz, com a qual encantava os fieis na Semana Santa, com o canto gregoriano. Escreveu sobre Cinema (veja a revista Cinéfilo, de José Gaspar) e atuou no Teatro. Na ribalta, foi também marcante, pois, em 1959, interpretou o “palhaço” do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Desse modo, o clown, novamente ou em definitivo, estava consagrado por L. Ruas.
10.                       A despeito de tantas atividades, padre Ruas envolveu-se com tenacidade na conjuntura política que atravessava o país, cujo resultado desabou no Governo (ou ditadura) Militar. Em 1964, ele era diretor da Faculdade de Filosofia, pertencente a arquidiocese de Manaus, quando foi preso pela repressão e recolhido junto com outros “comunistas” ao quartel do 27 BC, onde permaneceu por 40 dias.
11.  Ainda falando da atividade teatral. Na Semana Santa de 1963, padre Ruas que operava na Rádio Rio Mar, escreveu e dirigiu o Auto da Paixão, realizado no estádio de futebol em duas apresentações. Foi o primeiro no país, pois o de Nova Jerusalém (PE) é de 1968. Porém, o único em Manaus, porque o autor passou a Semana Santa de 64 encarcerado.
12. Nessa temporada, tomei a decisão de sair do seminário. Passei pelo serviço militar obrigatório e engajei-me na Força Estadual, de onde sou aposentado. Em suma, troquei a batina pela farda. Ao tempo, a casa de formação sacerdotal fechou as portas, liberando padre Ruas para suas atividades, agora com menor engajamento político. Esporadicamente o encontrava, seguia-o pelas páginas literárias de jornais.
13. Os quatro livros de L. Ruas têm histórias: o primeiro, de 1958, foi Aparição do Clown, já referido, representou seu “cartão de visitas” excepcional, marcante. A 2ª edição, em 1998, pertence a Editora Valer, para comemorar 40 anos de existência; o segundo, de 1970, é Linha d’Água, constituído de crônicas e poemas selecionados de publicações jornalísticas. Trata-se de um “livro legendário”, pois esteve perdido em gráfica da Guanabara, até ser recuperado cinco anos depois. O terceiro, de 1979, intitulado Os Graus do Poético, traz uma seleção de ensaios já publicados. Serviu para ilustrar as comemorações das bodas de prata da Rádio Rio Mar; enfim, o quarto, de 1985, Poemeu ou o (meu) sentir dos outros, que, sendo vencedor de um prêmio estadual em 1970, esperou 15 anos para ser publicado.
14. Disse antes que padre Ruas, fechado o seminário, foi cuidar de seu dever religioso. No entanto, desentendeu-se com o governo eclesiástico, afastando-se dos compromissos sacerdotais. Não lhe foi salutar essa decisão, pois caiu em relaxamento social, aprofundando o consumo da bebida, acompanhado do fumo. Seu amigo, padre Tiago Braz, diretor da Rio Mar, conseguiu mantê-lo minimamente ligado à Igreja. A presença do papa João Paulo II em Manaus, em 1980, realizou um “milagre”: o retorno de padre Ruas ao serviço pastoral, incumbido então da paróquia de Nossa Senhora dos Remédios, a segunda mais antiga de Manaus.
15. Em 1992, na sacristia dessa igreja, o vigário sofreu um agudo AVC. Cuidado com extremo zelo pela Igreja e pelos amigos, salvou-se com pesadas sequelas: imobilizado na cama e impossibilitado de falar e de escrever (terrível para a ação de um escritor). Nessas condições, visitei-o um dia, tornando-se a despedida. L. Ruas morreu em abril de 2000.
16.Quatro anos depois, decidi homenageá-lo. O mote seria o cinquentenário de sua ordenação sacerdotal. Como fazê-lo? Resolvi buscar dele o material publicado nos periódicos de Manaus.
17. Ao me dedicar aos papeis amarelados de jornais e revistas, desvendei outros motivos para ampliar esse tributo. Em 1954, ano de sua ordenação, Manaus assistiu à fundação de três entidades: a Rádio Rio Mar; o Clube da Madrugada e o Instituto Christus. Nas três instituições, L. Ruas transitou com eficiência.
18.                       Recolhi dos jornais, para dimensionar a produção de L. Ruas, em cálculo imaginativo, um montão de papel, onde ele inseriu uma infinidade de caracteres. Escreveu de 1953, desde o tempo de Seminário, até 1992, portanto, quase 40 anos de atividade literária. Ao lado desse material, recebi do falecido padre Luís Souza documentos pessoais e outras anotações pertencentes ao padre Ruas. Com essa matéria-prima em mãos, tornei-me por admiradores o “fiel depositário” desse acervo.
19.Para bem cumprir a função, organizei e já publiquei: 1) L. Ruas: itinerário de uma vocação (2004); Cinema e Crítica Literária (apoio da Ufam) 2010; Intérpretes de Aparição do Clown (com ajuda do poeta Jorge Tufic) 2010; Poesia Reunida (2013).
20.                      Aguardando o apoio cultural estão: Os contos de L. Ruas, e, ainda, Ronda dos Fatos. Enfim, um vasto material dele tenho publicado em meu Blog do coronel Roberto.
21. L. Ruas nasceu e morreu na mesma casa, na mesma rua (avenida Joaquim Nabuco), com curto intervalo em outro endereço. Ao falecer, lembrava uma árvore que tombara emocionando a rua tão doméstica. Ruas, porém, emocionou a cidade. Ainda jovem sacerdote publicou Palavras à árvore morta, que sugere seu epitáfio. Constituem repetida conversa entre o vento e uma árvore que nasceu e cresceu à beira da calçada. Vamos ao encerramento.
22.                       Anos depois, isto é, há dois dias, ele [o fícus] sentiu que algo estranho sucedia dentro de si. Uma espécie de tristeza, uma agonia, uma angústia. O vento, novamente, sussurra-lhe aos ouvidos de folhas, já agora ásperas, que umas árvores haviam sido destroçadas, decepadas, mutiladas.
E o fícus desprovido da inadvertência da mocidade, o fícus, abalado por tantos males, não resistiu à notícia. Sentiu que a seiva estacava dentro de seu tronco calejado pelas pedras duras do calçamento, sentiu que alguma coisa estava se rompendo e... com estalo de dor, tombou, abraçando sua rua, acariciado pelo vento que, absolutamente, não compreendia a razão do colapso. Mas, assim mesmo, chorava. Agradeço ao mestre Dilson Lages, do Portal Entretextos, pela promoção de mais esse resgate do padre-poeta L. Ruas.

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