CATANDO PAPÉIS & CONTANDO HISTÓRIAS

quarta-feira, julho 29, 2020

CASO KIT-KAT (1965)


Ao ingressar no quartel da Praça da Polícia, em 1966, encontrei alguns presos de Justiça, dividindo o espaço com oficiais. Um deles chamava atenção pelo porte avantajado: possuía 1m95. Era conhecido por Kazem (Mustafa El-kibbe), originário do Líbano, e aguardava o julgamento acusado de ter matado um patrício, na manhã de domingo, 24 de janeiro do ano anterior. Bom atirador e bem armado, Kazem atingiu a vítima de grande distância, com ela em movimento e de forma fatal. O delito constrangeu a comunidade árabe da cidade, teve ampla repercussão, e dele se encarregou os jornais da cidade. Parte desse material jornalístico vou compartilhar neste espaço.

Kazem era gente fina, a despeito do porte e do crime cometido, e possuía habilidade em massagem corporal, a qual distribuía com benevolência ao pessoal do quartel e outros clientes. Ao ser julgado e condenado, foi transferido para a extinta Penitenciária do Estado, com direito ao trabalho diurno, que realizava em uma “clínica” de sua especialidade, situada na avenida presidente Kennedy.

Em 1969, no domingo em que o homem desceu na Lua (20 julho), a justiça familiar oriental veio ao seu encontro. Um irmão da vítima tocaiou o Kazem na ponte JK, que liga os bairros de Educandos e Cachoeirinha. Nela, ao entardecer, quando voltava para o presídio, foi “justiçado”.
A Manaus de 1965 era inda um “porto de lenha”, tendo como prefeito interino Zany dos Reis (presidente da Câmara) empossado após a renúncia do prefeito eleito, radialista Josué Claudio de Souza, proprietário da Rádio Difusora. O governador do Estado era Arthur Reis, que sucedera ao político Plinio Coelho, cassado pelo Regime Militar, no ano anterior. A extinta Chefatura de Polícia estava situada na rua Marechal Deodoro, hoje fundos do Banco do Brasil. E uma população minguada de cerca de 200 mil habitantes, às vésperas do decreto de instalação da Zona Franca (fevereiro de 1967).

O crime do Kit-Kat, assim conhecido em razão de que o criminoso era proprietário da loja de confecções e armarinhos com esta denominação, situada na confluência da avenida 7 de Setembro com a rua Joaquim Sarmento, logo atrás da Matriz da padroeira. Pode ser incluído entre aqueles que “abalaram” a cidade devido a repercussão e as partes envolvidas.
No entrevero do crime estavam, de um lado, os irmãos Ulthman (morto) e Mussa (ferido) Judeth, e do outro, Kazem Mustafa El-kibbe El-kibbe, o criminoso. São vários depoimentos e versões; inicio com o prestado pelo ferido, e exibido em O Jornal (24 janeiro 1965).

Recorte do depoimento em O Jornal, 24 janeiro 1965

Em prosseguimento do inquérito policial, instaurado na Delegacia de Segurança Pessoal, sob a presidência do comissário Dinancy Barroso, para apurar a responsabilidade penal de Kazem Mustafa El-kibbe, que na manhã de anteontem, por volta das 11 horas, assassinara a tiros de Parabellum, calibre 45 (arma militar), a pessoa do cidadão Ulthmam Yussef Habud Judeth, alem de haver baleado um irmão da vítima, o cidadão Mussa Yussef Amud Judeth, transjordanês (sic), o qual se encontra internado em aposento especial do Hospital Beneficente Portuguesa, com ferimento na perna direita.

OUVIDO PELA COMISSÃO DE INQUÉRITO
Por volta das 12 horas de ontem, o comissário Dinancy Barroso, auxiliado pelo escrivão Aristóteles da Silva, ouviu o depoimento de Mussa Yussef Amud Judeth, que declarou o seguinte: Há pouco mais de dois meses chegou a esta cidade para trabalhar no comércio com seu irmão Ulthman, indo residir com ele naquele endereço. Contradizendo os afirmativos do criminoso, o referido cidadão indicou que jamais tivera relações de amizade com o criminoso, nunca tendo tido também qualquer desavença com ele por questão de eletrola como alegou no seu falso depoimento, o mesmo acontecendo com seu irmão, barbaramente assassinado na manhã de domingo, anteontem. Apenas trocava cumprimentos quando se encontrava na via pública, ou quando passava pelo apartamento dele. Esta vítima também nunca foi chamada a atenção por parte de Kazem, também nunca lhe dirigira insultos.

CONVITE PARA UM BANHO
Prosseguindo no seu depoimento, o senhor Mussa declarou que fora convidado para passar o dia no balneário do senhor Kaled Hauache, com sua família, inclusive seu irmão Ulthman, tendo tido a lembrança de levarem consigo a família de Miguel de tal, seu amigo, residente num edifício situado no cruzamento da rua Joaquim Sarmento com a avenida Sete de Setembro, onde o criminoso possui um estabelecimento comercial denominado “Kit-Kat”. Chegando a casa de Miguel, depois dos cumprimentos protocolares, retirou-se juntamente com seu irmão Ulthman para a rua onde ficou batendo bola com um garoto filho do senhor Miguel, enquanto a esposa deste preparava a refeição que seria servida no banho.

SURGIU INESPERADAMENTE O CRIMINOSO
Continuando o bate-bola em frente à casa do senhor Miguel, os dois irmãos foram surpreendidos com a presença de Kazem que saía do seu estabelecimento comercial trazendo embaixo do braço uma pasta de couro de cor preta. O criminoso acendendo um cigarro escorou-se ao seu carro, e disse ao garoto: “Você está jogando bola muito bem”. O menor na sua inocência convidou Kazem a tomar parte no bate-bola, tendo este dito o seguinte: “Não é hora. Agora não posso”. Ditas as palavras ao garoto, o criminoso advertiu Ulthman do seguinte modo: “Vamos acertar as contas”. Mussa, irmão de Ulthman, intervindo disse ao criminoso: “Pelo amor de Deus, não faça isso. Nós não temos contas a ajustar. Nós somos livres”. Em seguida, segundo depoimento de Mussa, o criminoso sacou de uma pistola e apontou para Mussa que estava encostado no seu carro, dizendo: “Tome que esse é seu”, passando então a realizar disparos. Temeroso, vendo que Kazem estava disposto a matar tanto a si como seu irmão Ulthman, Mussa procurou esconder-se por trás do carro e, em dado momento, fitando através do vidro, advertiu seu irmão do seguinte modo: “Meu irmão, corre que este homem quer acabar com a nossa vida”, e foi, então, quando Ulthman procurou evadir-se correndo pela [rua] Joaquim Sarmento rumo à rua Henrique Martins, enquanto o criminoso atirava contra si atingindo-o no pescoço e logo em seguida nas costas, tendo o referido jovem caído ao solo sem vida. Recordando-se de que seu irmão Ulthman conduzia uma pistola no seu carro, Mussa depois de ferido por Kazem procurou vingar a morte do seu irmão e saiu se arrastando-se pela Sete de Setembro a atirar sem rumo. Ao chegar à altura do BCA [Banco de Crédito da Amazônia], ali foi agredido por populares e policiais que lhe produziram ferimentos leves, sendo preso finalmente.

PRATICOU HOMICÍDIO NO LÍBANO
Terminando seu depoimento, o senhor Mussa declarou que Kazem praticara três crimes de homicídio em seu país, tendo conseguido fugir para o Brasil. Encerrou seu depoimento dizendo que nunca foi inimigo do criminoso.

PORTAVA TRÊS ARMAS
As autoridades da Delegacia de Segurança Pessoal presumem que o crime. estava premeditado, pois o criminoso portava consigo três armas automáticas, carregadas, além de grande quantidade de munição.

A VÍTIMA ESTAVA DESARMADA
O jovem falecido não portava qualquer arma, pois por ocasião do levantamento cadavérico feito pelo médico-legista do DESP. nenhuma armo foi encontrada em seu poder. Enquanto isso, o criminoso portava uma à mão, uma na pasta e uma no bolso.

Nota do autor da postagem:
Sabendo-se que o criminoso era bom atirador, não é crível que tenha atirado primeiro e errado “palmo e dentro”. Ao contrário, quando a vítima, correndo e à distância, foi atingida fatalmente. Evidente que a declaração acima na Polícia expõe a bússola dos advogados.

Um comentário:

  1. Sou neto do kazem , onde encontro os depoimentos dos envolvidos??

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