CATANDO PAPÉIS & CONTANDO HISTÓRIAS

domingo, maio 16, 2021

UMA CANÇÃO DE L. RUAS

 Vasculhando hoje os escritos jornalísticos do falecido L. Ruas (padre e poeta / cronista e professor / filósofo e boêmio) para um livro em sua homenagem, selecionei o texto aqui compartilhado. O livro será uma homenagem a data de seu nascimento, ocorrida em 1931. 


Recorte de A Gazeta (2 outubro 1963)


Gostaria que me ensinasse a cantar, de novo, aquela velha canção. Sei que me dirá que estou ficando romântico. Sempre fui um romântico. Vivo mais do passado. O presente e o futuro. para mim, são consequências do passado.

Ensine-me a velha canção. a velha canção. Gosto de cantarolar velhas canções. É verdade. Estou definitivamente preso àquela melodia.

Não saberia dizer, com precisão, o que ela me recorda. Penso que não chega mesmo a me recordar coisa alguma. Afinal ainda não estou tão velho para viver de recordações. Acredito que a vida ainda pode me reservar muita coisa boa nos passos que vou dar. Ainda terei de enfrentar muitas lutas. É sempre difícil e dolorido lutar. Mas que podemos fazer? Não é isto a vida?

Não se trata, precisamente, de recordações. Talvez ela desperte em mim certas tonalidades de azul ou de violeta. Talvez por isso eu goste daquela canção. Ou talvez ela venha me curar de um mal que descobri há pouco.

De repente senti que perdi minha tristeza. E eu ando à procura da minha perdida tristeza.

Não fui o primeiro a perdê-la. Lembre-se do poema do Bandeira: “Perdi o jeito de sofrer. — Ora essa. — Não sinto mais aquele gosto cabotino da tristeza.”

Não acredito que Santa Terezinha tenha atendido aquela oração farisaica do poeta de Libertinagem. Não acredito, também, naquele adjetivo com o qual ele nos quer engodar ou quer engodar a si mesmo. Não há nenhum gosto cabotino de tristeza. Ou a gente gosta da tristeza ou não gosta. Melhor. Ou a gente é triste ou não é. Conheço certas pessoas que não são tristes. São irremediavelmente chatas. Não sei se você conhece alguma dessas pessoas. Nunca estão tristes. Nunca ficam tristes. São de uma estupidez incalculável. Tão incalculável quanto uma poça de água estagnada.

Pois eu perdi a minha tristeza e não me conformo. Vou procurá-la por toda parte. Vou ser o Peter Pan da tristeza. Não me conformo em viver sem ela. Sei. Você deve estar rindo, a dizer que estou um tanto ou quanto desequilibrado das faculdades mentais. É disso que estou com medo. Como é que alguém pode ser humano, como é que alguém pode gozar de todas as suas faculdades sem tristeza. Todos os homens mais importantes que eu conheço foram tristes. Não falarei dos poetas, dos pintores, dos escultores, dos dramaturgos, dos humoristas. Estes não negaram nunca sua condição humana. Afinal foram eles que melhor conheceram o homem. Se eu não recuperar minha tristeza vou terminar no hospício.

É por isso que lhe peço encarecidamente: ensine-me, de novo, aquela velha canção.

É possível que ela devolva para o meu céu aquelas adoráveis tonalidades azuis e violetas. 

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