O título desta crônica expressava sabida obviedade: o Homem era
o governador Gilberto Mestrinho (1959-63), ao qual lhe foi dedicada, e a Luz,
a energia elétrica que ele restabeleceu na cidade, produzida por um
navio-gerador, denominado de “usina-flutuante”, ancorado nas proximidades do
bairro de Educandos.
Ruas, foto da RG |
L. Ruas, sacerdote, autor desta obra
conhecia bem os embaraços que a deficiente produção de eletricidade causava à
cidade. Ruas ocupava acomodação do Seminário São José, então na rua Emílio
Moreira, por ser professor e diretor da Casa; quanto a mim, também ocupava o
mesmo espaço, apenas como aluno-seminarista.
Recordo-me com convicção desses bloqueios,
em particular do rodízio de energia: 24 por 24 horas. Ou seja, dia sim, dia
não. Ao mesmo tempo, recordo com convicção a “usina flutuante”, pois era
morador de Educandos.
Dito isto, é melhor ler o texto
de L. Ruas, compartilhado de seu livro Linha d’Água: crônicas (Rio:
Artenova, 1970)
Recorte do título da publicação |
O HOMEM E A LUZ
(Para o Gov.
Gilberto Mestrinho)
“No princípio Deus criou o céu e a terra. A
terra, porém, estava informe e vazia, e as trevas cobriam a face do abismo; e o
espírito de Deus movia-se sobre as águas. E Deus disse: Exista a luz. E a luz
existiu. Deus viu que a luz era boa.” (Gen. 1: 1-4)
E só depois da
criação da luz, o Senhor começou a criar as outras coisas. Pois, como poderiam
existir as outras coisas se não houvesse luz? E depois da criação da luz
começou a interminável dança dos seres vivos. Em seguida, o Senhor criou o
verde das ervas aveludadas dos campos e a brancura cândida dos lírios. E criou
as árvores pejadas de frutos vermelhos e dourados, as uvas roxas e as laranjas
sumarentas. E criou os répteis brilhantes e lisos e os peixes de escamas
prateadas.
E teceu as pétalas
macias das rosas e as plumagens iriantes e fofas das aves e dos pássaros. E as aves
começaram a matizar de ritmos lépidos e multicores a mataria densa das grandes
florestas e o azul luminoso do firmamento.
E criou, também os
animais selvagens: a negra pantera o louro leão e os lustrosos paquidermes. E
criou os alvinitentes rebanhos de mansos cordeiros e os animais domésticos. E,
finalmente, criou o homem e a mulher e lhes deu olhos e inteligência de ver e
corpo e alma de amar para que contemplassem e amassem, deslumbrados, a
maravilhosa coreografia dos volumes e das linhas, do claro e do escuro, das
sombras e da luz, dos tons semitons. E a terra era um jardim de delícias.
Capa do livro |
E quando a noite
cobriu a terra e apagou a cintilação das cores, o Senhor ensinou o homem a
repetir o seu gesto criador. E o homem tomou dois sílex em suas mãos
inexperientes e comovidas. E curvado sobre eles, atritando um contra o outro,
arrancou do coração da pedra o mistério inenarrável do fogo. E a luz existiu.
E, desde então, o
homem aprendeu que a luz é necessária para continuar a tarefa que o Senhor lhe
confiara de perpetuar e aperfeiçoar a criação que Ele apenas esboçara e
iniciara. E o homem construiu castelos, apascentou rebanhos, plantou messes,
edificou catedrais, ergueu cidades, penetrou florestas, arquitetou pontes,
cavou minas, fabricou navios, burilou diamantes, imprimiu livros, engenhou
máquinas, represou rios, domou os mares e os ventos, modificou a face da Terra.
E o Senhor abençoava a continuação de seu trabalho criador que se realizava em
todos os cantos da terra.
E depois que haviam
decorridos milênios de séculos desde aquele milagre inicial, produzido pelas mãos
trêmulas do primeiro homem, o Senhor olhou para sua criação, para o lugar mais
belo da sua criação e viu, com imensa tristeza, que aquele lugar mais belo da
sua criação ainda permanecia como aquele abismo, primitivo de faces cobertas pelas
trevas.
O Senhor viu, com
imensa tristeza, sua criação paralisada, sua criação abandonada, sua criação permanecendo
ainda no primeiro capítulo do Gênese. Porque não havia luz.
E o Senhor, então, criou
um novo homem e lhe ensinou o milagre da luz como fizera ao primeiro homem. E o
novo homem como o primeiro, lutou curvado, não contra a dureza do sílex, mas, contra
a rude crosta da descrença e da desilusão que havia e envolvido os corações de
seus irmãos.
E, depois de uma
luta titânica, a luz existiu.
E a criação do
Senhor que, até então, fora abandonada e desprezada, começou a se agitar, a
vibrar, a cantar e a dançar. E a alegria que invadiu a criação do Senhor foi
tamanha que o Senhor olhou com emoção para o lugar mais belo da sua criação, para
o júbilo que se derramava do coração dos filhos dos homens e viu que era bom o
que aquele novo homem fizera.
E viu que podia
descansar e abençoou aquele homem e o seu trabalho e disse:
“Crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra, e dominai-a, e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se
movem sobre a terra.” (Gen. 1: 28).
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