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quarta-feira, dezembro 04, 2019

MANAUS: USINA-FLUTUANTE

O título desta crônica expressava sabida obviedade: o Homem era o governador Gilberto Mestrinho (1959-63), ao qual lhe foi dedicada, e a Luz, a energia elétrica que ele restabeleceu na cidade, produzida por um navio-gerador, denominado de “usina-flutuante”, ancorado nas proximidades do bairro de Educandos.
Ruas, foto da RG
L. Ruas, sacerdote, autor desta obra conhecia bem os embaraços que a deficiente produção de eletricidade causava à cidade. Ruas ocupava acomodação do Seminário São José, então na rua Emílio Moreira, por ser professor e diretor da Casa; quanto a mim, também ocupava o mesmo espaço, apenas como aluno-seminarista.
Recordo-me com convicção desses bloqueios, em particular do rodízio de energia: 24 por 24 horas. Ou seja, dia sim, dia não. Ao mesmo tempo, recordo com convicção a “usina flutuante”, pois era morador de Educandos.
Dito isto, é melhor ler o texto de L. Ruas, compartilhado de seu livro Linha d’Água: crônicas (Rio: Artenova, 1970)

Recorte do título da publicação


O HOMEM E A LUZ
(Para o Gov. Gilberto Mestrinho)

“No princípio Deus criou o céu e a terra. A terra, porém, estava informe e vazia, e as trevas cobriam a face do abismo; e o espírito de Deus movia-se sobre as águas. E Deus disse: Exista a luz. E a luz existiu. Deus viu que a luz era boa.” (Gen. 1: 1-4)

E só depois da criação da luz, o Senhor começou a criar as outras coisas. Pois, como poderiam existir as outras coisas se não houvesse luz? E depois da criação da luz começou a interminável dança dos seres vivos. Em seguida, o Senhor criou o verde das ervas aveludadas dos campos e a brancura cândida dos lírios. E criou as árvores pejadas de frutos vermelhos e dourados, as uvas roxas e as laranjas sumarentas. E criou os répteis brilhantes e lisos e os peixes de escamas prateadas.
E teceu as pétalas macias das rosas e as plumagens iriantes e fofas das aves e dos pássaros. E as aves começaram a matizar de ritmos lépidos e multicores a mataria densa das grandes florestas e o azul luminoso do firmamento.
E criou, também os animais selvagens: a negra pantera o louro leão e os lustrosos paquidermes. E criou os alvinitentes rebanhos de mansos cordeiros e os animais domésticos. E, finalmente, criou o homem e a mulher e lhes deu olhos e inteligência de ver e corpo e alma de amar para que contemplassem e amassem, deslumbrados, a maravilhosa coreografia dos volumes e das linhas, do claro e do escuro, das sombras e da luz, dos tons semitons. E a terra era um jardim de delícias.
Capa do livro
E quando a noite cobriu a terra e apagou a cintilação das cores, o Senhor ensinou o homem a repetir o seu gesto criador. E o homem tomou dois sílex em suas mãos inexperientes e comovidas. E curvado sobre eles, atritando um contra o outro, arrancou do coração da pedra o mistério inenarrável do fogo. E a luz existiu.
E, desde então, o homem aprendeu que a luz é necessária para continuar a tarefa que o Senhor lhe confiara de perpetuar e aperfeiçoar a criação que Ele apenas esboçara e iniciara. E o homem construiu castelos, apascentou rebanhos, plantou messes, edificou catedrais, ergueu cidades, penetrou florestas, arquitetou pontes, cavou minas, fabricou navios, burilou diamantes, imprimiu livros, engenhou máquinas, represou rios, domou os mares e os ventos, modificou a face da Terra. E o Senhor abençoava a continuação de seu trabalho criador que se realizava em todos os cantos da terra.
E depois que haviam decorridos milênios de séculos desde aquele milagre inicial, produzido pelas mãos trêmulas do primeiro homem, o Senhor olhou para sua criação, para o lugar mais belo da sua criação e viu, com imensa tristeza, que aquele lugar mais belo da sua criação ainda permanecia como aquele abismo, primitivo de faces cobertas pelas trevas.
O Senhor viu, com imensa tristeza, sua criação paralisada, sua criação abandonada, sua criação permanecendo ainda no primeiro capítulo do Gênese. Porque não havia luz.
E o Senhor, então, criou um novo homem e lhe ensinou o milagre da luz como fizera ao primeiro homem. E o novo homem como o primeiro, lutou curvado, não contra a dureza do sílex, mas, contra a rude crosta da descrença e da desilusão que havia e envolvido os corações de seus irmãos.
E, depois de uma luta titânica, a luz existiu.
E a criação do Senhor que, até então, fora abandonada e desprezada, começou a se agitar, a vibrar, a cantar e a dançar. E a alegria que invadiu a criação do Senhor foi tamanha que o Senhor olhou com emoção para o lugar mais belo da sua criação, para o júbilo que se derramava do coração dos filhos dos homens e viu que era bom o que aquele novo homem fizera.
E viu que podia descansar e abençoou aquele homem e o seu trabalho e disse:
“Crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra, e dominai-a, e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se movem sobre a terra.” (Gen. 1: 28).

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