Recorte da folha de rosto do livro de Gonçalves Maia |
Os
que se divertem
O
meu quarto no Hotel Casina dá para o
jardim da Praça do Palácio [hoje Praça
Dom Pedro]. É o melhor aposento do hotel, como o hotel é o melhor da
cidade. É também o quarto mais caro. Pago 20$000 [vinte mil] réis por dia. Já era, portanto, um aposento para ser
confortável e até luxuoso.
A mobília é, entretanto, humilde. O
guarda-roupa não tem portas de espelho. O lavatório é quase um lavatório de
estudante. Os tapetes são velhos. Mas a cama é boa, larga, macia e a luz entra em
grande jorros (sic), alegrando a
vida.
Quando toda a cidade arde abrasada, o meu
quarto é fresco. Só isso vale uma fortuna e eu não me queixo. Depois, estou
numa cidade onde tudo é caro. Antes assim.
As cidades onde tudo é barato e onde se
vive com pouco, são cidades pobres. E se nas cidades ricas a vida é cara, é que
também a vida tem mil recursos de subsistência. Essas cidades são como os
terrenos mineiros. Tudo está em descobrir o veio.Hotel e praça abandonados, 2013 |
Haverá miséria aqui? Não sei ainda.
O que eu vejo nesses grandes aterros que
se estão fazendo, nessas grandes construções que esfloram da terra, é que há
trabalho para um exército de proletários.
O carregador que me trouxe a bagagem
cobrou 15$000. A distância do cais ao hotel é talvez a que vai da Lingueta ao
Arco da Conceição (em Lisboa?). Mas
se isso é assim, é porque há dinheiro ou porque a população não é ainda tão
grande que a concorrência se tenha assinalado. Não me queixo disso, repito. Só
as cidades pobres me entristecem.
E eu não tenho razões para estar triste.
Saudoso sim, mas não triste. Pelo menos a anoite que eu acabo de passar, foi
uma noite em claro, mas uma noite musical e luminosa. A luz elétrica atravessa
os postigos e vem esbater nas paredes como um dia claro.
Do outro lado, em frente é o Eldorado; ao lado é a Pensão da Mulata. Até tarde eu ouvi a
música das orquestras e a cantoria dos couplets
alegres. São os cafés cantantes.
E, como ontem mesmo se deu um incidente
num desses cafés, segundo vejo de uma publicação de hoje nos jornais, alguns
trechos dessa publicação podem dar uma ideia dessas diversões, que só existem
nas grandes cidades do mundo e, no Brasil, só no Rio, São Paulo e Manaus.
Um espectador fez a uma artista qualquer
gesto que não pareceu muito comedido à autoridade que presidia ao espetáculo.
Prendeu-o e ele se defende. Não julgo nem discuto o mérito da defesa. Assinalo
apenas, registro somente o modo de compreender de um moralista alegre, de um
filósofo a Boccacio, que se
justifica.
É um espetáculo para homens, escreve ele:“(...) O rapazio hilariante que frequenta o hotel suspeito a que dá vida o teatrinho e do qual é este o chamariz da concorrência para especial gênero de negócios, vai ali apenas despertar os seus apetites genésicos, buscar estímulo para certa ordem de desejos, e é originalíssimo que a polícia, que ali deve ir simplesmente garantir a ordem pública, queira desvirtuar a essência do instituto que ela permite, exigindo circunspecção, moralidade e respeito naquilo que é por sua natureza acanalhada, truanesco, imoral.
Tais teatrinhos, não são como julgam na
sua vesga visão os senhores da polícia, cafés
cantantes: são aperitivos do amor, cortinas de lupanares, e é por isso que
funcionam eles como sucursais dos estabelecimentos em que o amor se compra e se
mercadeja.
Só os frequentam aqueles que gostam da canção da pulga ou do grilo, do monólogo do besouro ou da barata, aplaudem o cancã
e amam o maxixe e não se envergonham
de pertencer aos cabarés, aux Bohemiennes, entrar no Moulin Rouge ou nas Folies Bergères...”
Pensa que condeno? Nunca. Uma grande
cidade deve ter de tudo.
Da Pensão
da Mulata eu ouço o Açaí, o Vatapá, modinhas populares e gritos
frenéticos de aplausos.À meia-noite, uma banda marcial toca aqui perto, à porta de um estimado político que faz anos [Coronel Afonso de Carvalho, então presidente do Poder Legislativo, mais adiante, governador]. Às 5 da manhã o hino nacional estruge em frente do Palácio do Governo. Estamos a 7 de Setembro, a gloriosa data emancipacionista.
É com as suas notas patrióticas e
sugestivas que eu me levanto e vou à janela. O sol desponta. E, à sua luz de
ouro, eu contemplo a bela cidade que acorda para a vida e para o trabalho.
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