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terça-feira, agosto 11, 2020

A MORTE NA PANDEMIA

 

Aproveito este tempo de pandemia, cuja ação nefasta já produziu no país + de 100 mil mortos, para compartilhar a crônica do padre Nonato Pinheiro (foto), despedindo-se de sua irmã. Conta ele que ela, que Iracema enfrentou dura peleja contra “enfermidade implacável”. Sem mais explicações, melhor ler o texto. A dor que ele confessa ter sentido deve ser idêntica à de tantas famílias que perderam os seus para o coronavid19.

A publicação encontra-se em O Jornal, edição de 24 de janeiro de 1965.

 

Acompanhei entre lágrimas, orações e suspiros de emoção e saudade o cadáver de minha irmã, que levou para a sepultura a expressão de seu sorriso, imagem de sua bondade inalterável. Filha de heroína e heroína ela própria, enfrentou com estoicismo os golpes de uma enfermidade implacável, que há mais de um ano a martirizava. Mal refeito dessa provação cruel, que me exulcerou o coração, — tanto a estimava! – venho despetalar nas comemorações de sétimo dia os goivos de minha saudade, soluçante como o mar e tristonha como o langor dos crepúsculos.

A bondade foi a açucena imaculada e pulcra, que lhe perfumou os passos, suaves e macios como os de um anjo. Ao nascer, juntamente com a gêmea que a precedeu na ascensão para as alturas celestes, viu minha mãe, pousados sobre o berço de suas “pérolas gêmeas”, como lhes chamava meu pai, dois anjinhos rútilos e policromos, que na minha interpretação fraterna tanto podiam significar os Anjos Custódios, como a imagem dilucida e seducente de sua própria existência!

Chamavam-se Iracema e Aracy, e viram a luz do sol, no dia 29 de fevereiro de 1916. Quando meninas adolescentes, trajavam-se sempre do mesmo modo. Juntas fizeram seus estudos, diplomando-se professoras normalistas em 1934. Iracema contraiu núpcias em 1938, com o sr. Yano Botelho Monteiro, a quem deu quatro filhos e cinco netos, que eram todo o seu enlevo. Para suavizar os encargos e responsabilidades do esposo na manutenção da família, despediu-se da cátedra e ingressou no serviço público federal, nos quadros da Delegacia Fiscal.

Sempre observei em minha irmã a organização de sua vida, assim na repartição como no lar, que ela enchia e dourava com sua encantadora bondade. E as mãos da mestra e funcionária sabiam preencher com brilho os serviços de cozinha e copa, nas omissões das titulares, tão completa foi a formação doméstica que minha mãe soube dar às filhas.

Tive depoimentos expressivos de seus ex-alunos, colegas de repartição, amigos e conhecidos no que concerne ao tratamento que a todos dispensava. Sua bondade era uma constante e o seu sorriso era um imã.

Na enfermidade, longa e insidiosa, soube ser grande e heroína. Acompanhei-lhe os passos desde os primórdios da moléstia. Guardo como relíquias as cartas que me escreveu da Guanabara, aonde fora com o marido, esperançosa e confiante, em busca da uma cura que não obteve, ou resultou quimérica. Internou-se no Hospital dos Servidores no dia 8 de novembro de 1963 e sofreu várias intervenções cirúrgicas. De seu estoicismo fui informado pelo esposo e parentes, que me faziam referências pormenorizadas. Alguns não acreditavam no seu regresso a Manaus. Acompanharam de perto seus padecimentos, que ela disfarçava com o seu proverbial sorriso, a que aludiam os parentes e amigos nas epístolas que me remetiam. Retenho em meu arquivo missivas enaltecedoras e expressivas. (...)

Hilda da Silva Paula, irmã de Daisy, mandou-me do aeroporto este rápido, mas expressivo bilhete:

"Rio, 27-3-64. Primo Raimundo

Eis a resposta de tua, carta: Iracema! Não a virgem de lábios de mel, mas a nossa doce, meiga Iracema do nosso passado. Ela vai recuperada da grave enfermidade. Seus médicos recomendaram "nenhuma emoção". Conforta-a com tua palavra amiga e ajuda-a no máximo. Tivemos prazer de tê-la conosco. Esta vai assim. Estou no balcão do aeroporto.

Abraços de tua prima Hilda."

Deixando o hospital, minha irmã passou quinze dias de repouso no apartamento de nossa prima Judite de Paula Castro, que a cercou de carinhos e gentilezas, juntamente com seus irmãos Jerônimo, João, Hilda e Daisy. Com este registro, quero consignar de público meu reconhecimento a esses parentes tão amigos e diletos, não podendo esquecer a bondosa dedicação de outra prima extremosa, a Sra. Artemisia Gonçalves Leite.

Em Manaus, o prazer do regresso foi toldado ao depois pelas insídias da enfermidade, que encontrava novos caminhos e atalhos. Mas sempre contou com o conforto da família, dos parentes, amigos e colegas de repartição. Famílias como a do dr. Percy Menezes foram de uma dedicação sem par. Seu médico assistente, dr. Higino Maia, foi insuperável no tratamento. Desejo pôr em relevo as atenções e providências do sr. Écio Lucarini Barreiros, eficiente Delegado Fiscal do Tesouro Nacional, bom chefe e amigo de minha irmã. Sou grato pela atenciosa visita que o Sr. governador Artur Cézar Ferreira Reis e sua distintíssima consorte fizeram a minha irmã no hospital da Sociedade Portuguesa Beneficente e pela presença de Dona Graziela da Silva Reis e do coronel Trigueiro, chefe da Casa Militar do governo, no enterramento. Agradeço as atenções dos diretores, irmãs e enfermeiras do nosocômio português e a assistência espiritual dos bondosos Padres Redentoristas durante a enfermidade de minha irmã. (...)

Causou grata impressão a presença de membros da família Botelho (D. Graziela Silva Reis, dr. Álvaro Botelho Maia, dr. Domingos Botelho Mourão e outros), que se reuniram para confortar sua prezada tia Úrsula e seu primo Yano em tão doloroso transe. Penhorado agradeço as finezas dos jornais e emissoras locais, que divulgaram com relevo o lutuoso acontecimento.

E amanhã estaremos na Catedral Metropolitana para sufragar tua alma, minha querida e inesquecível irmã, assistindo à Missa de 7° dia, a ser oficiada pelo virtuoso Pastor da Arquidiocese, Dom João de Souza Lima, cujas preces hão de obter eco na eternidade, contribuindo para o teu refrigério e repouso!

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