A publicação encontra-se em O Jornal, edição de 24 de
janeiro de 1965.
Acompanhei entre lágrimas, orações e suspiros de emoção e saudade o cadáver de minha irmã, que levou para a sepultura a expressão de seu sorriso, imagem de sua bondade inalterável. Filha de heroína e heroína ela própria, enfrentou com estoicismo os golpes de uma enfermidade implacável, que há mais de um ano a martirizava. Mal refeito dessa provação cruel, que me exulcerou o coração, — tanto a estimava! – venho despetalar nas comemorações de sétimo dia os goivos de minha saudade, soluçante como o mar e tristonha como o langor dos crepúsculos.
A bondade foi a açucena imaculada
e pulcra, que lhe perfumou os passos, suaves e macios como os de um anjo. Ao
nascer, juntamente com a gêmea que a precedeu na ascensão para as alturas
celestes, viu minha mãe, pousados sobre o berço de suas “pérolas gêmeas”, como
lhes chamava meu pai, dois anjinhos rútilos e policromos, que na minha
interpretação fraterna tanto podiam significar os Anjos Custódios, como a imagem
dilucida e seducente de sua própria existência!
Chamavam-se Iracema e Aracy, e
viram a luz do sol, no dia 29 de fevereiro de 1916. Quando meninas
adolescentes, trajavam-se sempre do mesmo modo. Juntas fizeram seus estudos,
diplomando-se professoras normalistas em 1934. Iracema contraiu núpcias em
1938, com o sr. Yano Botelho Monteiro, a quem deu quatro filhos e cinco netos,
que eram todo o seu enlevo. Para suavizar os encargos e responsabilidades do esposo
na manutenção da família, despediu-se da cátedra e ingressou no serviço público
federal, nos quadros da Delegacia Fiscal.
Sempre observei em minha irmã a
organização de sua vida, assim na repartição como no lar, que ela enchia e
dourava com sua encantadora bondade. E as mãos da mestra e funcionária sabiam
preencher com brilho os serviços de cozinha e copa, nas omissões das titulares,
tão completa foi a formação doméstica que minha mãe soube dar às filhas.
Tive depoimentos expressivos de
seus ex-alunos, colegas de repartição, amigos e conhecidos no que concerne ao
tratamento que a todos dispensava. Sua bondade era uma constante e o seu
sorriso era um imã.
Na enfermidade, longa e
insidiosa, soube ser grande e heroína. Acompanhei-lhe os passos desde os
primórdios da moléstia. Guardo como relíquias as cartas que me escreveu da
Guanabara, aonde fora com o marido, esperançosa e confiante, em busca da uma
cura que não obteve, ou resultou quimérica. Internou-se no Hospital dos
Servidores no dia 8 de novembro de 1963 e sofreu várias intervenções
cirúrgicas. De seu estoicismo fui informado pelo esposo e parentes, que me
faziam referências pormenorizadas. Alguns não acreditavam no seu regresso a
Manaus. Acompanharam de perto seus padecimentos, que ela disfarçava com o seu
proverbial sorriso, a que aludiam os parentes e amigos nas epístolas que me
remetiam. Retenho em meu arquivo missivas enaltecedoras e expressivas. (...)
Hilda da Silva Paula, irmã de Daisy,
mandou-me do aeroporto este rápido, mas expressivo bilhete:
"Rio, 27-3-64. Primo
Raimundo
Eis a resposta de tua, carta: Iracema! Não a virgem de lábios de mel, mas a nossa doce, meiga Iracema do nosso passado. Ela vai recuperada da grave enfermidade. Seus médicos recomendaram "nenhuma emoção". Conforta-a com tua palavra amiga e ajuda-a no máximo. Tivemos prazer de tê-la conosco. Esta vai assim. Estou no balcão do aeroporto.
Abraços de tua prima Hilda."
Deixando o hospital, minha irmã
passou quinze dias de repouso no apartamento de nossa prima Judite de Paula
Castro, que a cercou de carinhos e gentilezas, juntamente com seus irmãos
Jerônimo, João, Hilda e Daisy. Com este registro, quero consignar de público
meu reconhecimento a esses parentes tão amigos e diletos, não podendo esquecer
a bondosa dedicação de outra prima extremosa, a Sra. Artemisia Gonçalves Leite.
Em Manaus, o prazer do regresso
foi toldado ao depois pelas insídias da enfermidade, que encontrava novos
caminhos e atalhos. Mas sempre contou com o conforto da família, dos parentes,
amigos e colegas de repartição. Famílias como a do dr. Percy Menezes foram de uma
dedicação sem par. Seu médico assistente, dr. Higino Maia, foi insuperável no
tratamento. Desejo pôr em relevo as atenções e providências do sr. Écio
Lucarini Barreiros, eficiente Delegado Fiscal do Tesouro Nacional, bom chefe e
amigo de minha irmã. Sou grato pela atenciosa visita que o Sr. governador Artur
Cézar Ferreira Reis e sua distintíssima consorte fizeram a minha irmã no
hospital da Sociedade Portuguesa Beneficente e pela presença de Dona Graziela
da Silva Reis e do coronel Trigueiro, chefe da Casa Militar do governo, no
enterramento. Agradeço as atenções dos diretores, irmãs e enfermeiras do
nosocômio português e a assistência espiritual dos bondosos Padres
Redentoristas durante a enfermidade de minha irmã. (...)
Causou grata impressão a presença
de membros da família Botelho (D. Graziela Silva Reis, dr. Álvaro Botelho Maia,
dr. Domingos Botelho Mourão e outros), que se reuniram para confortar sua prezada
tia Úrsula e seu primo Yano em tão doloroso transe. Penhorado agradeço as
finezas dos jornais e emissoras locais, que divulgaram com relevo o lutuoso acontecimento.
E amanhã estaremos na Catedral
Metropolitana para sufragar tua alma, minha querida e inesquecível irmã,
assistindo à Missa de 7° dia, a ser oficiada pelo virtuoso Pastor da
Arquidiocese, Dom João de Souza Lima, cujas preces hão de obter eco na
eternidade, contribuindo para o teu refrigério e repouso!
Nenhum comentário:
Postar um comentário