Ainda que morando bem distante, meu
irmão me surpreende com sua memória. A crônica de hoje relembra o panorama
visto do Panorama, aquele restaurante no Alto do Educandos, que
possibilita descortinar a baia do rio Negro e seus múltiplos empregos. A casa,
que pertence a um parente de meus parentes, já não possui aquele relevo passado,
todavia, ainda permite desfrutar o exuberante caminho fluvial.Panorama da baia do rio Negro
O
PANORAMA
Renato Mendonça (agosto 2020)
Alvorada. Varanda!? Nada
disso, mas esses nomes se infiltraram maliciosamente em minha mente, me impedindo
de relembrar o correto nome do gracioso restaurante, no alto do Educandos, da
minha outrora bucólica Manaus. Lembrava-me de tudo: da Baixa da égua,
onde no meu tempo de criança não vi nenhuma, talvez existisse nos primórdios; do
inesquecível Rio Negro, este sim, imponente, formoso, com suas águas
escuras e reluzentes, que bem merece, ainda hoje, a metáfora do espelho d’água.
Sem nenhum exagero, à noite, conseguíamos perceber os reflexos da lua sobre o
tapete matizado com entretons claros, passeando sobre a superfície do majestoso
curso d’água.
Fiquei com esses dois nomes
na minha cabeça, teimosamente, por alguns dias, como se fossem espiões
infiltrados usando falsa identidade, para desvirtuar o caminho da recordação. Isso
me confundiu sobremaneira, pois não conseguia resgatar a inspiração dos velhos
tempos, nem criar um texto idôneo para contar. Era como se, ao reencontrar
alguém muito caro e familiar, você não lembrasse seu nome. A conversa iria
fluir num vazio, sem a afabilidade necessária.
Socorreu-me meu irmão, Ricardo,
treze anos mais jovem que eu, pois lembrou-se da propaganda da Rádio
Difusora, destacando merecida apologia da deliciosa peixada servida
no Restaurante Panorama. O nome traduz bem a imagem que se tinha a
partir da sacada lateral do imóvel. Ali, onde curiosamente tudo se completava,
havia uma evidente interação entre a expectativa pela refeição e o panorama
visto do alto. Havia também uma verdadeira felicidade palatável, principalmente
porque eram raros esses momentos. A maioria das vezes, somente em ocasiões
especiais. Como complemento do prazer, ao degustar a
fumegante “peixada de tucunaré” — a mais requisitada —, servida numa panela de
barro, acompanhada de ovos cozidos e a farinha d’água. Para aquecer mais ainda
a alma e o corpo, o molho de pimenta murupi.
Era curioso como aquele
lugar especial exercia certa magia em nossos corações. Como se fosse um
catalizador de lembranças, desde as mais remotas até as recentes. Obviamente,
meus irmãos mais novos não tinham nenhuma lembrança antiga do bairro de
Educandos, pois não nasceram lá. Mas tinham do Morro da Liberdade, do
Igarapé do Quarenta, onde quase todos ali aprenderam a nadar. E por que quarenta?
Não sei, talvez uma alusão ao local de nascimento da fonte d’água, do olho
d’água como se dizia antigamente. Era no quilometro 40 da estrada do Japiim.
E este igarapé cruzava vários bairros até desaguar no fabuloso Rio Negro, o
catalizador de todas as águas, assim como o Panorama das nossas reminiscências
e emoções.
E o Panorama era isso: um
fiel depositário de nossas mais nobres experiências de vida, ou as mais
engraçadas, talvez as mais lúdicas também. O Rio Negro era o pano de fundo,
sobre o qual pintávamos os cenários que se avivavam em nossa memória.
Depois de saciados, ainda reforçávamos
a nutrição com um suco de frutas tropicais, entre tantas a escolher. No mais,
muito riso, muita conversa lançada antes da tão aguardada caldeirada, ou entre
uma colherada e outra. Muitas lembranças ali foram narradas, no frescor da nossa
juventude. A Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e o cônego Antônio
Plácido — conterrâneo de minha mãe, nascidos no distrito do Careiro — entravam
na temática religiosa; também, o Grupo Escolar Machado de Assis, onde eu
e meu irmão Henrique estudamos o curso primário.
Por muito tempo, esse
restaurante frequentou as colunas sociais, devido à localização e o bucolismo
que oferecia aos frequentadores. Hoje, o bairro não tem mais as líricas
catraias que o ligava ao centro da cidade. Há quarenta anos foi construída uma
ponte e, por mérito, o saudoso Antônio Plácido de Souza foi homenageado.
O Boulevard Rio Negro, apelidado de Baixa da égua, perdeu o
título e virou um simples beco, sufocado que ficou pelas construções à
beira da rua.
Ainda bem que o horizonte,
lá longe, foge das mãos do homem. Lá está, inalterado, o panorama e a poesia diante
dos nossos olhos. A visão pode enfim propor a mágica de desarraigar nossas
reminiscências, nossas recordações de infância, e vivê-las novamente.
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