A direção da Revista |
Este
magazine circulou na década de 1930, em Manaus, editado pelo saudoso
jornalista, cronista e acadêmico Genesino Braga. Da edição de novembro de 1936
saquei o
texto abaixo de Ramayana de Chevalier (que dispensa apresentação), cuidando de peixes.
A data é oportuna para falar desse tema: Sexta-feira Santa.
Em remanso de lago, em
poço de igapó, em água represada de confluente, em qualquer lugar da Planície,
boia, satisfeito e feliz, peixe comprido e benéfico: pirarucu.
Peixe glebário, sofredor,
manso como ninguém, hospitaleiro como poucos, aguentando, sem protestar, cada
canícula danada do Amazonas, pelo bem da terra e da gente.E gostoso. Ninguém é capaz de negar que, na maciez da carne, no sabor dos acepipes, na volúpia brillat-savarineana das longas travessas enfeitadas e espetaculares, não fosse pirarucu, prato digno de uma boa e farta secreção gástrica. Até de palinódias e epicédios, tais as tristuras nascidas da satisfação pós-pasto.
Belo peixe, grande
prato, velho amigo.
Nas horas ondulantes
da alegria cabocla, quando os naipes se ensarilham nos saraus para o aconchego
das coxas, para cadência dos sambas, fustigados pelo calor dos vatapás e do
clima, melhor companheiro não existe que o pirarucu glebário, irmão de
sofrimento telúrico, camarada antigo de todas as melancolias, remédio infalível
para todas as excitações e carícias...Não há sardinha elegante, traíra bailadeira, pescada duvidosa, matrinxã sentimental, que não repita e proclame, das excelências do pirarucu, em dias de crise familiar, em momentos de vazante braba e inflexível.
Fazem-lhe festas,
afagos, doçuras, mimos, mungangas, rapapés, ternuras, delícias até, quando,
sozinho, sem concorrentes, é ele o supremo bem da Planície, o único herói que
resiste às crueldades atmosféricas, às selvagerias cosmológicas.
Transfigura-se, mesmo,
no tubarão doméstico. Chega a comer das pirapitingas mais suaves, das tucunarés
mais cheirosas. Chega, até, à façanha de tolerar as blandícias e os namoros das
piranhas mais terríveis. Basta encher o rio, melhorarem as coisas,
movimentarem-se as ambições alienígenas, e ei-lo perdido.
Pirarucu baixa, baixa,
some-se no desconforto do ninguém. Basta chegar bacalhau. Peixe das “oropa”,
“de fora” no sentido genérico do termo, novidade, ineditismo, sensação.
Cadê pirarucu em festa
caseira? Cadê pirarucu em agrado doméstico? Cadê pirarucu em carinho de portão?
Cadê pirarucu em traquinadas de Mindu, de Vila Municipal, de Cachoeirinha, de
gleba?
Sumiu-se. Não se
enxerga pirarucu nem para os pobres. As sardinhas, as traíras, as pescadinhas
rechonchudas e magníficas, todas as castas ictiológicas, sarabandas, murmuram,
reviram os olhos, bolam, rebolam, lânguidas, sedutoras, inoperantes, em torno
do bacalhau vitorioso, egresso de qualquer banda desconhecida.
Basta ser bacalhau
para ser vencedor. Esquecendo-se sofrimentos em comum, tragédias íntimas,
companheirismos de infância, amabilidades prodigalizadas no silêncio dos
jardins quietos, tudo em benefício do sorriso efêmero, da carícia transitória,
das banalidades passageiras do bacalhau itinerante.
Pirarucu não toma
vergonha. Mal bacalhau arriba as velas e zarpa, lá se volta ele para as sardinhas
trêfegas, para as pescadas levianas, para as piramutabas seresteiras,
acolhendo-as de novo, no mesmo abraço sincero de portão.
O Toddy é um chocolate
metido à besta. O bacalhau é um pirarucu que ninguém provou. Quantas vezes
chega podre à porta da venda, quando o pirarucu fresquinho, trazido do Amatari
ou do Canumã, é desprezado injustamente...
Tudo novidade, a
terrível, a cruciante, a dominadora novidade, que faz mais gostosos os lábios
desconhecidos, mais torturantes os corpos inalcançados. É por isso que a
sífilis anda por aí, bonitinha como o quê.Maior injustiça ao pirarucu é a de desprezá-lo quando ele é o único que se atira, sinceramente, cavalheirescamente, à minhoca atada ao dorso do anzol. É o único que é pescado, pelas pescadas.
Bacalhau chega,
fareja, vê muita intimidade, muito amor à primeira vista, muita pirotecnia,
muito voo, muita tentativa de aterrisagem, acha tudo muito precipitadozinho,
goza, tira a sua casquinha, arranca o
seu pedaço, lambe os beiços, arriba, e vai dizer o diabo das pirapitingas em
Belém.
Enquanto isso pirarucu
ficou aqui, firme, estático, sereno, esperando a hora da “carne virada” para
avançar. Há uma vingança para o pirarucu
que comeu a minhoca do anzol. Pirarucu casado não fica de mãos abanando. Solto
é manso, bondoso, tolerante, resignado. Amarrado é curioso: vira candiru.
Nenhum comentário:
Postar um comentário