CATANDO PAPÉIS & CONTANDO HISTÓRIAS

sexta-feira, março 29, 2013

REVISTA CABOCLA


A direção da Revista 
Este magazine circulou na década de 1930, em Manaus, editado pelo saudoso jornalista, cronista e acadêmico Genesino Braga. Da edição de novembro de 1936 saquei o texto abaixo de Ramayana de Chevalier (que dispensa apresentação), cuidando de peixes. A data é oportuna para falar desse tema: Sexta-feira Santa.


 

Em remanso de lago, em poço de igapó, em água represada de confluente, em qualquer lugar da Planície, boia, satisfeito e feliz, peixe comprido e benéfico: pirarucu.
Peixe glebário, sofredor, manso como ninguém, hospitaleiro como poucos, aguentando, sem protestar, cada canícula danada do Amazonas, pelo bem da terra e da gente.
E gostoso. Ninguém é capaz de negar que, na maciez da carne, no sabor dos acepipes, na volúpia brillat-savarineana das longas travessas enfeitadas e espetaculares, não fosse pirarucu, prato digno de uma boa e farta secreção gástrica. Até de palinódias e epicédios, tais as tristuras nascidas da satisfação pós-pasto.

Belo peixe, grande prato, velho amigo.
Nas horas ondulantes da alegria cabocla, quando os naipes se ensarilham nos saraus para o aconchego das coxas, para cadência dos sambas, fustigados pelo calor dos vatapás e do clima, melhor companheiro não existe que o pirarucu glebário, irmão de sofrimento telúrico, camarada antigo de todas as melancolias, remédio infalível para todas as excitações e carícias...
Não há sardinha elegante, traíra bailadeira, pescada duvidosa, matrinxã sentimental, que não repita e proclame, das excelências do pirarucu, em dias de crise familiar, em momentos de vazante braba e inflexível.

Fazem-lhe festas, afagos, doçuras, mimos, mungangas, rapapés, ternuras, delícias até, quando, sozinho, sem concorrentes, é ele o supremo bem da Planície, o único herói que resiste às crueldades atmosféricas, às selvagerias cosmológicas.
Transfigura-se, mesmo, no tubarão doméstico. Chega a comer das pirapitingas mais suaves, das tucunarés mais cheirosas. Chega, até, à façanha de tolerar as blandícias e os namoros das piranhas mais terríveis. Basta encher o rio, melhorarem as coisas, movimentarem-se as ambições alienígenas, e ei-lo perdido.

Pirarucu baixa, baixa, some-se no desconforto do ninguém. Basta chegar bacalhau. Peixe das “oropa”, “de fora” no sentido genérico do termo, novidade, ineditismo, sensação.
Cadê pirarucu em festa caseira? Cadê pirarucu em agrado doméstico? Cadê pirarucu em carinho de portão? Cadê pirarucu em traquinadas de Mindu, de Vila Municipal, de Cachoeirinha, de gleba?

Sumiu-se. Não se enxerga pirarucu nem para os pobres. As sardinhas, as traíras, as pescadinhas rechonchudas e magníficas, todas as castas ictiológicas, sarabandas, murmuram, reviram os olhos, bolam, rebolam, lânguidas, sedutoras, inoperantes, em torno do bacalhau vitorioso, egresso de qualquer banda desconhecida.

Basta ser bacalhau para ser vencedor. Esquecendo-se sofrimentos em comum, tragédias íntimas, companheirismos de infância, amabilidades prodigalizadas no silêncio dos jardins quietos, tudo em benefício do sorriso efêmero, da carícia transitória, das banalidades passageiras do bacalhau itinerante.
Pirarucu não toma vergonha. Mal bacalhau arriba as velas e zarpa, lá se volta ele para as sardinhas trêfegas, para as pescadas levianas, para as piramutabas seresteiras, acolhendo-as de novo, no mesmo abraço sincero de portão.

O Toddy é um chocolate metido à besta. O bacalhau é um pirarucu que ninguém provou. Quantas vezes chega podre à porta da venda, quando o pirarucu fresquinho, trazido do Amatari ou do Canumã, é desprezado injustamente...
Tudo novidade, a terrível, a cruciante, a dominadora novidade, que faz mais gostosos os lábios desconhecidos, mais torturantes os corpos inalcançados. É por isso que a sífilis anda por aí, bonitinha como o quê.
Maior injustiça ao pirarucu é a de desprezá-lo quando ele é o único que se atira, sinceramente, cavalheirescamente, à minhoca atada ao dorso do anzol. É o único que é pescado, pelas pescadas.

Bacalhau chega, fareja, vê muita intimidade, muito amor à primeira vista, muita pirotecnia, muito voo, muita tentativa de aterrisagem, acha tudo muito precipitadozinho, goza, tira a sua casquinha, arranca o seu pedaço, lambe os beiços, arriba, e vai dizer o diabo das pirapitingas em Belém.
Enquanto isso pirarucu ficou aqui, firme, estático, sereno, esperando a hora da “carne virada” para avançar.  Há uma vingança para o pirarucu que comeu a minhoca do anzol. Pirarucu casado não fica de mãos abanando. Solto é manso, bondoso, tolerante, resignado. Amarrado é curioso: vira candiru.

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