Narra uma lenda suburbana que o falecido Áureo Bringel de Mello (1924-2015) – advogado, jornalista, poeta, contista, pintor, político e senador pelo Amazonas – não encarava uma viagem aérea sob hipótese alguma, ou como canta o musical, tinha “medo de avião”. Não sei como desembarcou em Manaus em fevereiro de 1970, ocasião em que os amigos lhe fizeram os melhores encômios. Primeiro foi Luiz Bacellar, que o saudou com um poema aqui compartilhado.
Semana seguinte foi a vez de Genesino Braga, cronista de dilatado texto, enaltecendo ao porto-velhense que se realizou no Amazonas. A publicação aqui compartilhada ocorreu no Jornal do Commercio (15 fev. 1970).
Aureo Mello caricaturado por Moacir Andrade, na Revista da UBE de 1983 |
De breve tornado aos seus pagos há muito deixados, Áureo Mello vagueia, nestes dias, os caminhos em que outrora andaram em sonhos a sua poesia e o seu amor. Os dias da infância e os da mocidade, culminados num triunfo de ideal político que o levaria a transplantar-se da querência amada, ressurgem-lhe a toda hora, por todos os lugares, com aquelas mesmas imagens insistentes que se guarda na lembrança dos tempos mais felizes. A velha porta amiga que se reabre; os braços afetuosos de outrora que se estendem; o rosto esquecido que súbito, reaparece, sorrindo; a árvore frondosa do quintal antigo, — símbolo de hospitalidade e proteção; o gosto sápido dos frutos regionais saboreados no tabuleiro do Messias (ah!, os pajurás de racha...); a exclamação alarmada dos bem-te-vis nos ninhos das mangueiras; a velha casa de beiral que sumiu dando lugar ao edifício de vinte ou mais andares, — tudo devolve à sensibilidade poética do conterrâneo visitante as suas velhas fontes de inspiração, com as imagens que se não diluíram e jamais se diluirão no andar dos tempos, porque fixadoras de todo um mundo interior e reflexo de sentimentos, do qual ele é poeta amoroso e gentil.
Recorte do citado jornal |
Vinte e cinco anos distam do lançamento, aqui entre nós,
do primeiro livro de poemas de Áureo Mello. “Luzes Tristes”, que assim
se intitulava o belo volume, e assim porque — ele próprio o revela no último
terceto do soneto de igual título, — “Pois, ó sonho!, ó sorrir!, ó deus amor!,
ó glória!, / Sois, nesta vida umbrosa, humana e transitória / Os meus tristes
clarões, as minhas luzes tristes...”, representam bem a sua individualidade
poética, que extravasava o seu prodígio criador, seivoso e novo, nas mais puras
expressões da beleza com afirmação e intensidade. Seus poemas de então tinham
funda expressão pessoal e suas ideias eram mensagens sensíveis de uma grande
alma otimista e generosa, encerrando toda a comoção humana através dos símbolos
mais nobres.
Saindo, como poeta, do grupo de intelectuais novos que,
abelhas inquietas, apuravam o mel nos favos do Centro de Estudos da Mocidade,
"igrejinha" de escola renovadora que fez sozinha a significação
literária de uma época, Áureo Mello se integrou no movimento modernista mais
por uma necessidade íntima de renovar, nas tendências e nas ousadias das novas
correntes. E o que nos mostrou, através de seu livro de estreia, foi um índice
forte de definição dos novos rumos do espírito brasileiro, já a esse tempo se
desembaraçando das imposições passadistas. Por isso, quando apareceu, marchava
seguro de si mesmo, com uma clara compreensão da poesia de seu tempo, apoiado
num pleno domínio da personalidade. (...)
Agora mesmo, depois de um agradável reencontro com o
poeta, em dias desta semana, durante o qual mais uma vez pudemos sentir a
irradiação do seu poder de simpatia, através da palestra clara e fluente, através
do gesto largo e espontâneo, através das palavras de louvor e de admiração para
tudo e para todos (não falou mal de ninguém, não reagiu, não restringiu, não opôs,
não contrariou, não demoliu. Admirou, aplaudiu, concordou, — como admirou sempre
as paisagens, como aplaudiu sempre os amigos: a bondade de uns, a fortaleza de
outras, o talento de todos), — agora mesmo, dizíamos, tomamos da estante, para
as delícias de alguns breves momentos, seu livro de poemas, aquele mesmo da
estreia: "Luzes Tristes". (...)
Agora o poeta, que teceu há vinte e cinco anos essa teia
lírica de encanto e de beleza, revê suas velhas fontes límpidas de inspiração,
nas terras de seu nascimento. O sonho de futuro que ele sonhara — para a sua
terra para o seu povo e para si próprio como sentimento de uma e de outro, -- aí
está em afirmativas reais no processo de desenvolvimento econômico em que o
Amazonas hoje se expande. Não lhe são revelação nem surpresa, bem o sabemos,
por que estavam justos nos termos de sua clarividência de amazonense idealista.
Mas, lhe falam de um triunfo que tomou sentido com os "peleadores" de
seu clã lítero-político. Por isso, enlaçamos-lhe no abraço amigo que lhe estendemos
ao reencontrá-lo a vaguear solitário, saudoso de si mesmo, naquela tarde de
violência crepuscular, semana última pelos mesmos caminhos que outrora andaram
em sonhos sua poesia e seu amor.
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