A postagem pertence ao Renato Mendonça, meu irmão, que a escreveu no dia consagrado a Nossa Senhora Auxiliadora. Nesta data, abraço com veneração pelo natalício o amigo fraterno Paulo Vital e a filha Sofia Mendonça.
Passei pelo menino e me
dirigi à entrada da Padaria, tinha o propósito apenas de me abastecer do pão
nosso de cada dia. Eu sou um habitué daquele estabelecimento comercial, mas
nunca o tinha visto antes. Dois passos adiante, não consegui seguir em frente.
O olhar do menino me chamou. Voltei lentamente e, numa rápida reflexão, vi que
aquele menino se parecia comigo. Tinha entre oito e dez anos, moreno, cabelos
negros, olhar vivo e uma compleição física franzina. Estava agachado segurando
pela boca um saco preto, desses que se usa para o lixo, com algumas coisas
dentro.
Grupo de meninos observados no Careiro |
Não me pediu nada,
apesar de eu lhe ter dedicado atenção. Olhei nos seus olhos e perguntei
docemente: “o que está fazendo aí, garoto?” Não era uma pergunta desproposital,
afinal ele não me parecia um pedinte, ou pelo menos não deixava transparecer
pelo olhar cristalino que emitia. No entanto, era um olhar inquisidor, que me
cobrava atitude humana enquanto eu abordava a minha consciência. “Estou catando
latinhas e garrafas pet...”, me respondeu calmamente. “Entendi... o pessoal,
quando saí, te entrega?”, falei uma obviedade, me aproximando mais um pouco do
menino. “Sim...”, foi a resposta lacônica que me deu, sem demonstrar ansiedade,
nem mesmo me perguntou se eu ia consumir alguma coisa que lhe fosse resultar
num produto reciclável. Fiquei ainda uns dois ou três segundos olhando o
garoto. Ele me transmitiu uma certa paz! Não que eu estivesse com falta dela,
mas era uma paz diferente, avassaladora, que me envolvia como se um manto estivesse
me cobrindo e me protegendo do frio da insensatez. Fiquei imaginando os
discípulos recebendo o Espírito Santo, será que teve esse poder de seduzir e
inebriar com a força da fé e da solidariedade? E no caso deles, ainda ficaram
dotados de sabedoria plena conforme lhes foi ensinada por Jesus.
Entrei no
estabelecimento consumindo esses pensamentos. Planejando uma maneira de
ajudá-lo sem o constranger. Eu não ia comprar nada que pudesse lhe render uma
embalagem usada. Também diagnostiquei que qualquer reciclável que lhe desse
seria muito pouco, algo muito menor que uma esmola. Isso, sim, seria um
despropósito com o ser humano. Essas migalhas não dignificam ninguém, pelo
contrário, subestimam. A sociedade humana precisa ser mais justa. Mas, para
mudar os conceitos e os costumes há um enorme caminho a ser seguido, desde a
mais tenra idade. Há uma necessidade urgente de se diminuir o fosso social que
separa os ricos dos pobres, ou da classe média dos miseráveis. Intui que aquele
menino, que me cativou com seu olhar emblemático, está na idade ideal para o
aprendizado. Pode aprender com essas adversidades, com as dificuldades da vida
para ser tornar um cidadão. É difícil, mas não impossível.
Resignado, ele não
parecia sofrer com a situação econômica que vivia; parecia que estava apenas
carregando sua pequena cruz... Não conjecturei mais nada, estava na hora de
pagar pelo pão. Antes, porém, me penitenciei por não ter lhe comprado algo para
comer. No mesmo momento, minha consciência me absolveu: “ele não parece estar
faminto, está ali com outra finalidade...” Botei a mão na carteira e separei
cinco reais. Minha consciência me sacudiu de novo: “não acha pouco?”.
Realmente, se julguei que as latinhas era uma miséria, um acinte à dignidade
humana, por que não lhe dar algo mais?
Saí dali com a alma
engrandecida carregando o meu corpo mais leve. Fui em direção ao garoto, mas
ele não estava mais lá. Apenas o saco preto estava depositado na calçada. Girei
o olhar e não o achei por perto, saí, caminhei pela calçada para um lado e para
o outro e não o vi. Fui até um lugar onde se vendia frango e refrigerante, e
nada. O menino sumiu. No sentido de esperar ele retornar, fui até um caixa
eletrônico e saquei vinte reais. Eu queria doar um valor maior que os cinco que
havia pensado anteriormente, e a minha consciência me condenou.
Voltei ao menino e ele
ainda não estava lá. Estranhei o fato porque o saco preto estava no mesmo
lugar, na calçada, na mesma posição. Abaixei-me e abri o saco. Apenas umas
poucas latinhas e duas ou três garrafas pets de água mineral de meio litro. De
novo, discerni: por que ele não levou o saco para onde ele foi? Ou será que
deixou ali no intuito de alguém, conhecendo sua missão, ir depositando as latas
no saco? Não, isso não é comum, respondi a mim mesmo.
Raciocinei que ele
voltaria, em algum momento voltaria. Coloquei uma nota de vinte reais dentro do
saco e fechei-o com um laço. Na certa, quando ele encontrasse não ficaria
constrangido, não estaria vendo o rosto do benfeitor. Saí como se estivesse
carregando a pomba da paz no ombro. Enquanto caminhava de volta, minha
consciência me garantia que era Jesus que estivera ali, transfigurado naquele
menino, para ver a minha reação e testar a amplitude do meu comportamento
humano. Não basta apenas doar aquilo que nos sobra, doar as migalhas que caem
da nossa mesa — é preciso repartir o pão! Há sempre um sinal de Deus em cada
episódio que vivemos nesta vida afora, e devemos aproveitar para ser
essencialmente humanos.
Jesus ressuscita em
nossa vida quando nos distraímos entre as leviandades da sociedade. Devemos
deixar fluir de dentro de nós o verdadeiro amor ao próximo. Sempre que houver
uma chance, usar a chave do seu coração para abri-lo de dentro para fora.
Principalmente, quando nos deparamos com um olhar infantil puro, imaculado, que
cobra de nossa consciência atitudes humanas.
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