CATANDO PAPÉIS & CONTANDO HISTÓRIAS

quinta-feira, novembro 11, 2021

SERVIÇO DE SAÚDE PMAM: NOTA PARA SUA HISTÓRIA

 Já muito escrevi sobre a presença de Ramayana de Chevalier na Polícia Militar do Amazonas, na condição de médico chefe do Serviço de Saúde. Como alcançou este cargo nos idos de 1936, ele mesmo descreve no artigo aqui compartilhado do livro em que se reverencia ao político amazonense Manuel Severiano Nunes (1892-1957), seu padrinho. 


 

O VIGOR DE UM CARÁTER

Eu não sabia bem se era eu, um jovem ardente e confuso, ou um pedaço de meu pai, quem entrava, àquela manhã doirada de luz, pelo gabinete do Secretário-Geral do Estado do Amazonas. Vinha do Sul, onde me formara em Medicina, mais propriamente da Bahia, que eu deixara saudoso e galante. Um emprego! Cavar um emprego! Era essa a mentalidade do momento, enquanto não sazonasse a minha clínica, a vida não me tisnasse de desilusões, o tempo não me argentasse a fronte. Um emprego! Mas onde?

O Estado era pequeno, politicamente, as posições poucas e já usurpadas, a iniciativa particular quase nenhuma por essa época. Casas de saúde não existiam. Serviços privados, do ponto de vista médico, nem sombra. O governador era o Dr. Álvaro Botelho Maia, por esse tempo um espelho da juventude de minha terra. Orador, poeta, professor, político. Um tanto lânguido para a administração. Contudo, bom e digno. Eu já escorvara a escopeta das investigações. Não havia nada à vista, a olho nu. Mulheres, muitas. Emprego, nenhum.

Comecei balbuciando a minha clínica de consultório. Na província, a essa altura, era difícil misturar-se o literato e o médico. O povo só acreditava em clínico de aspecto soturno, um tanto sobre o medíocre, com cara de pai de família. Eu tinha um rosto imberbe, alegre e sorridente como o cartaz de uma pensão de marafonas. Estavam duros a conquista de um emprego e o começo da clínica. Foi então que um desses anjos perdidos na terra, alma cândida e boa, Sebastião de Bogéa Saint-Clair, soprou-me um nome: Manuel Severiano Nunes. Em 30, na hora das barricadas, ele formara com o meu pai na "Legião de Outubro". Um amigo.

Muitos o chamavam de "Frasquinho de Veneno". Para mim, foi um frasquinho de perfume. Que Deus o guarde no mais veludoso recanto do seu regaço. Um caráter. Leal. Firme. Desses que só prometem uma vez. Para cumprir. Tinha um doce crepúsculo nos olhos, que lembrava tristeza ou romantismo. E era alegre com os seus companheiros. Soube viver, como soube morrer. Só uma tristeza lhe empanou a hora da morte: morrer distante de sua terra, longe do Amazonas que ele tanto amava.

Um homem. Com todas as letras, com todas as dores, com todas as lutas.

Saint-Clair levou-me a ele. Ia-se organizar de novo a Polícia Militar do Amazonas, cuja tradição vinha da campanha de Plácido de Castro e das lutas de Canudos. Severiano, atendendo ao amigo, olhou-me nos olhos e disse: "Você será o chefe do Serviço de Saúde da futura PM". E apertou-me as mãos, adiantando: "Eu sou amigo do seu pai e admiro a sua inteligência". Despedi-me como um pássaro. Entrei em casa cantando. Estava arranjado o emprego. Álvaro Maia, governador, também meu amigo, não recusaria o meu nome.

Recorte do Almanaque de oficiais, ano 1948

Daí por diante, comecei a subir em minha carreira, até terminar reformado como Coronel-Médico, neste delicioso outono biológico que me inebria. (...)

Foi num dia triste, no Rio de Janeiro, que recebi a notícia de seu falecimento. Depois de algum sofrimento, na pobreza do seu apartamento sóbrio e digno, o gigante entregara a alma ao seu Criador. Fui vê-lo, comovidamente.

O Posto 6 estava embuçado de nuvem. O mar Atlântico soluçava nas escarpas do Forte. O seu corpo, engerelado e pálido, conservava, mesmo no mistério da morre, o leve sorriso fraternal que ele dedicara aos que lhe eram leais.

O Amazonas teve nele um soldado, um filho ardente e nobre, um condutor de homens, uma bandeira, um advogado. Foi caboclo em toda a extensão luminosa da palavra. Meu testemunho teria que vir entrelaçado com as corolas da gratidão mais pura.

O jovem médico, que começou a sua escalada do primeiro degrau que ele lhe dera, ainda hoje, malferido pelo destino, como um animal selvagem, ergue os olhos para Deus e pede por ele, com a mesma vibração honrada dos primeiros dias.

Ao lado de Álvaro Maia, ele foi um defensor insone do Amazonas. Quem poderá esquecer as suas lutas, os seus revezes, os seus triunfos, as suas glórias? Conheci-o muito de perto, em certos ângulos de intimidade cordial que só são dados aos legítimos companheiros, em horas felizes, como em instantes amargos. Tenho certeza de que os seus filhos haverão de honrá-lo, assim como herdarão dele um fecundo, um profundo amor pelo Amazonas.

Seu perfil não é fácil. Visto de longe, da fumaceira das distâncias, do poeiral das ruas, das fogueiras das paixões políticas, Severiano Nunes poderá apresentar uma face ignota para mim. Essa, não a conheci, nem creio sua. A que conheci e estimei, a que se fixou na minha saudade e na minha gratidão, para sempre, essa era resplendente e sadia, sorridente e amável, jovial e carinhosa, cristã e admirável como uma tela de [Thomas] Gainsborough (1727-1788).

O político tinha comigo um traço de união indelével: o Amazonas era, para ele, algo como um pedaço do seu próprio sentimento, como a afirmação de sua própria personalidade.

 


Nenhum comentário:

Postar um comentário