Já muito escrevi sobre a presença de Ramayana de Chevalier na Polícia Militar do Amazonas, na condição de médico chefe do Serviço de Saúde. Como alcançou este cargo nos idos de 1936, ele mesmo descreve no artigo aqui compartilhado do livro em que se reverencia ao político amazonense Manuel Severiano Nunes (1892-1957), seu padrinho.
O VIGOR DE
UM CARÁTER
O Estado era pequeno, politicamente, as posições poucas e já
usurpadas, a iniciativa particular quase nenhuma por essa época. Casas de saúde
não existiam. Serviços privados, do ponto de vista médico, nem sombra. O governador
era o Dr. Álvaro Botelho Maia, por esse tempo um espelho da juventude de minha
terra. Orador, poeta, professor, político. Um tanto lânguido para a
administração. Contudo, bom e digno. Eu já escorvara a escopeta das investigações.
Não havia nada à vista, a olho nu. Mulheres, muitas. Emprego, nenhum.
Comecei balbuciando a minha clínica de consultório. Na
província, a essa altura, era difícil misturar-se o literato e o médico. O povo
só acreditava em clínico de aspecto soturno, um tanto sobre o medíocre, com
cara de pai de família. Eu tinha um rosto imberbe, alegre e sorridente como o
cartaz de uma pensão de marafonas. Estavam duros a conquista de um emprego e o
começo da clínica. Foi então que um desses anjos perdidos na terra, alma cândida
e boa, Sebastião de Bogéa Saint-Clair, soprou-me um nome: Manuel Severiano
Nunes. Em 30, na hora das barricadas, ele formara com o meu pai na
"Legião de Outubro". Um amigo.
Muitos o chamavam de "Frasquinho de Veneno". Para
mim, foi um frasquinho de perfume. Que Deus o guarde no mais veludoso recanto
do seu regaço. Um caráter. Leal. Firme. Desses que só prometem uma vez. Para
cumprir. Tinha um doce crepúsculo nos olhos, que lembrava tristeza ou
romantismo. E era alegre com os seus companheiros. Soube viver, como soube
morrer. Só uma tristeza lhe empanou a hora da morte: morrer distante de sua
terra, longe do Amazonas que ele tanto amava.
Um homem. Com todas as letras, com todas as dores, com todas
as lutas.
Saint-Clair levou-me a ele. Ia-se organizar de novo a Polícia
Militar do Amazonas, cuja tradição vinha da campanha de Plácido de Castro e das
lutas de Canudos. Severiano, atendendo ao amigo, olhou-me nos olhos e disse:
"Você será o chefe do Serviço de Saúde da futura PM". E apertou-me as
mãos, adiantando: "Eu sou amigo do seu pai e admiro a sua inteligência".
Despedi-me como um pássaro. Entrei em casa cantando. Estava arranjado o
emprego. Álvaro Maia, governador, também meu amigo, não recusaria o meu nome.
Recorte do Almanaque de oficiais, ano 1948 |
Daí por diante, comecei a subir em minha carreira, até terminar reformado como Coronel-Médico, neste delicioso outono biológico que me inebria. (...)
Foi num dia triste, no Rio de Janeiro, que recebi a notícia de
seu falecimento. Depois de algum sofrimento, na pobreza do seu apartamento
sóbrio e digno, o gigante entregara a alma ao seu Criador. Fui vê-lo, comovidamente.
O Posto 6 estava embuçado de nuvem. O mar Atlântico soluçava
nas escarpas do Forte. O seu corpo, engerelado e pálido, conservava, mesmo no
mistério da morre, o leve sorriso fraternal que ele dedicara aos que lhe eram
leais.
O Amazonas teve nele um soldado, um filho ardente e nobre, um
condutor de homens, uma bandeira, um advogado. Foi caboclo em toda a extensão
luminosa da palavra. Meu testemunho teria que vir entrelaçado com as corolas da
gratidão mais pura.
O jovem médico, que começou a sua escalada do primeiro degrau
que ele lhe dera, ainda hoje, malferido pelo destino, como um animal selvagem,
ergue os olhos para Deus e pede por ele, com a mesma vibração honrada dos
primeiros dias.
Ao lado de Álvaro Maia, ele foi um defensor insone do
Amazonas. Quem poderá esquecer as suas lutas, os seus revezes, os seus
triunfos, as suas glórias? Conheci-o muito de perto, em certos ângulos de
intimidade cordial que só são dados aos legítimos companheiros, em horas
felizes, como em instantes amargos. Tenho certeza de que os seus filhos haverão
de honrá-lo, assim como herdarão dele um fecundo, um profundo amor pelo
Amazonas.
Seu perfil não é fácil. Visto de longe, da fumaceira das distâncias,
do poeiral das ruas, das fogueiras das paixões políticas, Severiano Nunes
poderá apresentar uma face ignota para mim. Essa, não a conheci, nem creio sua.
A que conheci e estimei, a que se fixou na minha saudade e na minha gratidão,
para sempre, essa era resplendente e sadia, sorridente e amável, jovial e carinhosa,
cristã e admirável como uma tela de [Thomas] Gainsborough (1727-1788).
O político tinha comigo um traço de união indelével: o
Amazonas era, para ele, algo como um pedaço do seu próprio sentimento, como a afirmação
de sua própria personalidade.
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