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terça-feira, junho 02, 2020

BUZINA DOS PARANÁS (1958)

Capa do livro

Em 1958, o ex-governador Álvaro Maia (1893-1969) publicou o livro Buzina dos paranás (Manaus: Ed. Sergio Cardoso). Foi uma festa literária pela competência do autor, carimbada pelas obras que se seguiram, desse modo, consolidando a sua habilidade intelectiva.
Quando deste lançamento, outro competente intelectual amazonense – Ramayana de Chevalier (1909-72) elaborou uma apreciação sobre a obra de Maia, saudando-o como o “gigante da lírica equatorial”.
Chevalier foi lido no matutino A Crítica (edição 3 de junho). Nesta postagem, vai a transcrição:


Cabeçalho do artigo (A Crítica, 3 jun. 1958)


DE LONGE, das profundas solidões do meu espírito, emergi cheio de ninfeias e matupás, depois da leitura do último livro do poeta Álvaro Maia. Vim com os olhos incendiados e a alma em febre. Trazia nas mãos um compêndio filosófico e na boca um grito de louvor à minha terra! O que há de misterioso no complexo amazônico, que escraviza aos seus áugures, por toda a vida? Nenhum poeta poderá ser mais límpido, mais puro, mais ressurgido do limbo natural, do que aquele que nasceu, viveu e compreendeu a Amazônia.
Dir-se-á que o artista, no seu Buzina dos Paranás, conservou o aticismo clássico, o estilo acadêmico que lhe serviu de marco inicial. É um modus insolitus hoje, respeitável contudo. O Amazonas não se descreve com facilidade, nem no ensaio, nem no lirismo. Daí certos plumilívidos terem preferido, nascendo e vivendo na Amazônia, escrever sobre o vaso noturno de Madame Stael.
O livro de Álvaro Maia é um breviário de amazonidade. Contém belezas inesquecíveis, imagens inolvidáveis. Tem a pujança dos acapus, o terno lirismo das flores de mamorana, o suave ondular do alísio penteando o vale. Traz, nos seus versos, a seiva oculta e virginal da diluviândia, o mágico esplendor das mais alegres madrugadas e dos mais coloridos crepúsculos do mundo. Tem imagens geniais, frutos saborosos de sua sazonada experiência telúrica. “Sobre as águas barrentas” é um hino glorioso e eterno. E o Amazonas inteiro, através de sua ternura cabocla, é um “esfumado vitral de caninas e barcos”.
Sofro da mesma moléstia desse artista bom: amo desmesuradamente à minha terra. Quero-a, com ciúmes de Otelo, com bravuras de Bertrand du Gueselin [1320-80], com a filosófica e paciente devoção do íncola. O Amazonas me corre nas veias, como um cauim bendito, dá-me aos olhos fulgurações de murerus na sombra, inflama-me a voz com os retumbos da inhauira-ituassu, adoça-me o coração, no gesto largo do perdão e do amor. Assim em Álvaro Maia.
Álvaro Maia
O marupiara não se corrigirá nunca. É um enfermo da beleza e da gleba. O seu livro nos narra isso, aos tropos, como em Horácio, em remígios, como em Castro Alves, dolente como em Tagore. Viaja-se, chora-se de saudades. Corre dentro da gente um igarapé de lembranças, sob a música do seu talento plenilunar. Não o vejo acadêmico, que isso não me interessa, nem escritor de escola, que isso é mesquinho para a sua eclética. Olho-o na proa do casco, pulso firme no jacumã, visão perdida nos longe do estirão, devorando sonhos e miragens. Vejo-o alcançado de sol, batido de espantos, sob o chapéu de tucum, bebendo a gengibirra fermentada, mago de uma religião natural, irmão dos rebojos e dos candirus. E, adiante, coroado de painas flutuantes, mergulhar no lago tristíssimo trazendo de volta esse livro admirável, grande e sonoro como a sua inteligência e a buzina dos caçadores de plumas.

Uma viagem. Sim, uma eterna viagem adentro de mim mesmo, foi a leitura desse livro. Porque nunca me separei do Amazonas, jamais o deixei sem esperanças, sem um gemido de saudade, sem um gesto de retorno permanente, sem uma atitude viril em sua defesa, seja contra quem for. Nossa literatura não é compreendida no resto do Brasil. Nem nós pretendemos que o seja. Guardemos, no armorial da nossa arte, ao lado de poetas caboclos como Américo Antony, os rouxinóis do Clube da Madrugada, os sacerdotes da gleba como Mavignier de Castro, o brasão desse gigante da lírica equatorial, esse Álvaro Mala que, como a maçaranduba, resiste ao tempo, jovem no cerne e na alma, ostentando às gerações futuras os gonfalões do seu espírito solar!

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