Capa do livro |
Em 1958, o
ex-governador Álvaro Maia (1893-1969) publicou o livro Buzina dos paranás
(Manaus: Ed. Sergio Cardoso). Foi uma festa literária pela competência do
autor, carimbada pelas obras que se seguiram, desse modo, consolidando a sua habilidade
intelectiva.
Quando deste
lançamento, outro competente intelectual amazonense – Ramayana de Chevalier (1909-72)
elaborou uma apreciação sobre a obra de Maia, saudando-o como o “gigante da lírica equatorial”.
Chevalier foi lido no matutino A Crítica (edição 3 de junho). Nesta
postagem, vai a transcrição:
Cabeçalho do artigo (A Crítica, 3 jun. 1958) |
DE LONGE, das profundas solidões do meu espírito,
emergi cheio de ninfeias e matupás, depois da leitura do último livro do poeta Álvaro
Maia. Vim com os olhos incendiados e a alma em febre. Trazia nas mãos um compêndio
filosófico e na boca um grito de louvor à minha terra! O que há de misterioso
no complexo amazônico, que escraviza aos seus áugures, por toda a vida? Nenhum
poeta poderá ser mais límpido, mais puro, mais ressurgido do limbo natural, do
que aquele que nasceu, viveu e compreendeu a Amazônia.
Dir-se-á que o artista, no seu Buzina dos Paranás,
conservou o aticismo clássico, o estilo acadêmico que lhe serviu de marco
inicial. É um modus insolitus hoje, respeitável contudo. O Amazonas não
se descreve com facilidade, nem no ensaio, nem no lirismo. Daí certos plumilívidos
terem preferido, nascendo e vivendo na Amazônia, escrever sobre o vaso noturno
de Madame Stael.
O livro de Álvaro Maia é um breviário de amazonidade.
Contém belezas inesquecíveis, imagens inolvidáveis. Tem a pujança dos acapus, o
terno lirismo das flores de mamorana, o suave ondular do alísio penteando o
vale. Traz, nos seus versos, a seiva oculta e virginal da diluviândia, o mágico
esplendor das mais alegres madrugadas e dos mais coloridos crepúsculos do
mundo. Tem imagens geniais, frutos saborosos de sua sazonada experiência
telúrica. “Sobre as águas barrentas” é um hino glorioso e eterno. E o Amazonas
inteiro, através de sua ternura cabocla, é um “esfumado vitral de caninas e
barcos”.
Sofro da mesma moléstia desse artista bom: amo
desmesuradamente à minha terra. Quero-a, com ciúmes de Otelo, com bravuras de Bertrand
du Gueselin [1320-80], com a filosófica e paciente devoção do íncola. O
Amazonas me corre nas veias, como um cauim bendito, dá-me aos olhos fulgurações
de murerus na sombra, inflama-me a voz com os retumbos da inhauira-ituassu,
adoça-me o coração, no gesto largo do perdão e do amor. Assim em Álvaro Maia.
Álvaro Maia |
O marupiara não se corrigirá nunca. É um enfermo da
beleza e da gleba. O seu livro nos narra isso, aos tropos, como em Horácio, em remígios,
como em Castro Alves, dolente como em Tagore. Viaja-se, chora-se de saudades.
Corre dentro da gente um igarapé de lembranças, sob a música do seu talento plenilunar.
Não o vejo acadêmico, que isso não me interessa, nem escritor de escola, que
isso é mesquinho para a sua eclética. Olho-o na proa do casco, pulso firme no
jacumã, visão perdida nos longe do estirão, devorando sonhos e miragens. Vejo-o
alcançado de sol, batido de espantos, sob o chapéu de tucum, bebendo a gengibirra
fermentada, mago de uma religião natural, irmão dos rebojos e dos candirus. E,
adiante, coroado de painas flutuantes, mergulhar no lago tristíssimo trazendo de
volta esse livro admirável, grande e sonoro como a sua inteligência e a buzina
dos caçadores de plumas.
Uma viagem. Sim, uma eterna viagem adentro de mim mesmo,
foi a leitura desse livro. Porque nunca me separei do Amazonas, jamais o deixei
sem esperanças, sem um gemido de saudade, sem um gesto de retorno permanente,
sem uma atitude viril em sua defesa, seja contra quem for. Nossa literatura não
é compreendida no resto do Brasil. Nem nós pretendemos que o seja. Guardemos, no
armorial da nossa arte, ao lado de poetas caboclos como Américo Antony, os
rouxinóis do Clube da Madrugada, os sacerdotes da gleba como Mavignier de
Castro, o brasão desse gigante da lírica equatorial, esse Álvaro Mala que, como
a maçaranduba, resiste ao tempo, jovem no cerne e na alma, ostentando às
gerações futuras os gonfalões do seu espírito solar!
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