Este conto compartilho da matéria-prima produzida pelo
acadêmico Ramayana de Chevalier (1909-1972). Constitui farto material exposto no
matutino A Gazeta, quando
este dirigiu a Secretaria de Administração do Estado, ao tempo do 1º governo de
Gilberto Mestrinho.
Ainda mais dois contos exporei do mesmo arquivo.
A Gazeta, 1º de novembro de 1961 |
“Essa história está ficando
com azinhavre!”, dizia, meio contrafeito, o Zé Florêncio, referindo-se ao
noivado de sua filha Judith. Na intimidade da alcova, em conversa com dona
Zeferina, ele desabafava:
“Afinal de contas, já lá vão
cinco anos, e o Cunegundes não se resolve! É um plantão permanente, uns
revirados de olhos, e tome missa, esse rapaz não sai da igreja, come hóstia de
manhã à noite, fala baixinho para não perturbar a digestão, e já está entravando
o destino da nossa filha há cinco anos. Essa história anda me cheirando mal. Ou
será que o Cunegundes não é homem?”.
A pergunta alvoroçou dona
Zeferina, num protesto:
“Que é isso, homem de Deus!
Até parece maldição! Então você não vê que um rapaz como o Cunegundes, forte,
desempenado, vermelho que nem barbela de peru, com um peitarraço que parece um
estrado de exposição, vai deixar de ser homem!”
Zé Florêncio retrucava, de
orelha em pé:
“Sei lá, Zefa! Tenho visto
tanta coisa por esse mundo! Olha, você não se recorda do Ricardinho, noivo da
nossa filha, antes do Cunegundes? Forte, um tipão de rapaz, com um par de
braços que pareciam dois troncos de ipê, e ao fim, o que é que deu? Descobriram
que ele brincava de mulher com o sacristão. Você não ficou espantada quando soube?
E eu não lhe contei as minúcias: não era o pobrezinho do sacristão, tão piedoso
e bichinho, que seduzia o Ricardinho, era este que saía dos seus dados para
desviar para os quintos do inferno, o coroinha de padre Chico!”
Zé Florêncio dera graças a
Deus, quando desmascararam a doença do Ricardinho. A Judith chorou uns tempos,
depois acostumou-se. E pegou, de golpe, o Cunegundes, recém-chegado da corte,
um rapagão atlético, de palavra
fácil, um paredão! E a coisa colou e foi-se arrastando, sob a proteção geral da
família. Às vezes, Zé Florêncio piscava para a esposa, levantava-se, jornal na
mão, rumo da alcova, cochichando com ela:
“Dá uma folga no rapaz! Afinal, essa história de
pegar só na mão, coçar dedinho, furar a mutuca dos olhos, com jeito de boi
morto, não põe casamento pra diante! É preciso uma pimentinha, Zefa, é preciso”.
E acendia o seu cachimbo de fumo de rolo, mais
fedorento que um bafo de onça. De fato, nesses intervalos, nos quais a mãe
cantava lá dos fundos da casa para demonstrar que o sinal estava aberto, o
Cunegundes deixava a Judith saltar-lhe ao pescoço, ela mesma sugando-lhe a boca
com frenesi, apalpando-o como um batedor de carteira. Cunegundes respondia
parcimoniosamente, em beijos secos, sem muita intimidade, sempre espantadiço:
“Não exagere, Judith! Olhe o seu pai! De repente ele
surge por aí e entorna o caldo! Paciência! Mais longe já esteve!”
E comportava-se, endireitando o laço da gravata, numa
atitude respeitosa. Judith ficava em cólicas. O macho, bonitão e jovem, ao lado
dela, era um convite à malícia e ao amor. E era sempre, com alegria, que ela
aceitava o convite dele, para irem à missa, ao dia seguinte.
“Não falte, bem! O sermão vai ser elevado e puro!
Não falte!”. De fato, ao dia seguinte, lá estava ela, assistindo ao sermão do
vigário, sempre tão cheio de mel e de bons conselhos. Tentava, na igreja, uma
encostadazinha no Cunegundes, mas ele estava de olho pregado na imagem da Mãe
Santíssima, mais frio que fundo de foca. Judith já andava cheia de sermões. De
vez em quando, pegava um filé de um deles, no qual se aconselhava a preservação
da família, a doçura do lar, a felicidade da prole, e danava-se a dar
cotoveladas no Cunegundes:
“Está vendo, Gundinho? É a Igreja quem diz, é o seu
vigário quem aconselha! Olha!”.
Mas o Cunegundes, nem bola! Frio, gelado,
contemplando a face lindíssima da Virgem, de olhos ternos como ovelhas agonizantes.
Nos dias de comunhão, o rapaz incendiava-se. Olhava para a Judith, como se
estivesse pegando fogo, sob o véu transparente, as fitas coloridas, o vestido branco,
um todo cerúleo na fisionomia concentrada. Nesses dia. Cunegundes se
transfigurava, e suas palavras saíam mais candentes, mais lascivas. Passado
isso, caía o jovem na mesmice da rotina. Zé Florêncio, uma noite, tentou a bola
sete:
“Cunegundes, meu jovem. Eu sei que a vida está dura
que as circunstâncias não são para brincadeiras. Mas Judithinha precisa
casar-se, constituir família! Você já pensou na nossa alegria, um netinho para
embalar...”.
E punha-se a andar de um lado para outro, meio ridículo,
fazendo que ninava uma criança imaginária... Dona Zeferina completava:
“Sempre foi nosso sonho, Gudinho! Um bebe parecido
com o pai, assim rosado, forte, um meninão, hein Gundinho? Um meninão!”
E ria, estimulando a filha. Mas o Cunegundes era um
iceberg. Sorria amarelo, baixava a
vista, desviava-se da Judith. Zé Florêncio chegou a aconselhá-lo, num assomo de
coragem:
“Meu filho, eu compreendo o que são essas coisas!
Já fui rapaz, boêmio, gastei-me nos braços do femeeiro! (E olhava, desconfiado,
para a esposa). Sei bem o que é isso! Por que você não vai ao médico
especialista em coisas de homem, conversa com ele, quem sabe uma recuperação,
um bom tratamento...”.
Cunegundes, ruborizado, não respondia, torcia a
cara, emudecia. Um dia, Judith empurrou-o contra a parede, a mão sôfrega
buscando a braguilha do rapaz, num desespero:
“Será que você não é homem, Gudinho? Diga? Minha
carne não lhe excita, não lhe dá furor?”.
O Cunegundes transtornado, empurrado contra o muro,
desabafou como uma chaleira fervendo:
“Sou homem, sim, Judith! Mas eu amo Nossa Senhora!
Sei que é um pecado horrível! Sei que eu serei amaldiçoado, mas é superior as
minhas forças! Vou à igreja contemplá-la, apaixonadamente, delirantemente!
Quando você faz comunhão, e põe véu e, de branco, fica parecendo com ela, eu
perco a cabeça, tenho vontade de estrangulá-la de beijos, de esmagá-la de
carinhos! Vista-se igual a ela, Judith, e eu casarei com você no dia seguinte!
Amo-a, Judith, sou um desesperado amante, um pobre e inconsolável apaixonado! A
pureza dela, a virgindade dela, a beleza dela me condenaram para sempre.”
E caiu, chorando, enroscado aos pés da noiva
estatelada!
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