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quarta-feira, novembro 14, 2018

RAMAYANA DE CHEVALIER – CONTO (2)


Esta página literária foi produzida pelo acadêmico Ramayana de Chevalier (1909-72), e divulgada no matutino A Gazeta, em 6 de novembro de 1961. Na ocasião, Chevalier dirigia a Secretaria de Administração do governador Gilberto Mestrinho. Ainda outro conto vou compartilhar do mesmo arquivo.



A vida, para o Sanches, andava monótona. Ninguém conhece direito a natureza humana. Há precipícios insondáveis no fundo do coração. Sujeitos, com aparência de santos, têm mais taras que o Marques de Sade. O Sanches não era rico, mas ganhava bem. Subgerente de uma casa de estivas, tinha direito a uns dividendos razoáveis. Aos domingos, quando solteiro, ia para os balneários distantes, acompanhado com uma pequena, depená-la toda, para sorver-lhe o corpo depois, devagarinho. (...)
O Sanches no fundo, era um patife. Mas um patife bondoso, desses que não mordem, não latem, não promovem a desgraça ostensiva dos outros. Um patife tranquilo. Quando casou, a Lulu adorava o jeitão do Sanches. Dançava colado, murmurava endechas na conchinha das orelhas, apertava-a como se ela fosse desertora, esfregava-se de maneira acintosa. Quando os bailes acabavam, eles corriam para os cantos escuros, e ali ficavam algum tempo, aos grunhidos.
Lulu casou sequiosa. O Sanches encheu-a de fotografias devassas, de gravuras imorais. Tudo o que um boêmio sabe, depois de 30 anos de farras, a Lulu soube em seis meses de matrimônio. A Grécia inteira perdia para o Sanches. Os Doze Césares eram seminaristas junto do subgerente. Havia nele um prazer especial de descobrir, de desvendar os mistérios do sexo para a Lulu. O que é isso, Sanchinho? O que é aquilo, Sanchote? Sanchito, isso é bom? Ah! que experiência formidável a de ontem, Sanchão!

(...) Sanches terminou cansado da Lulu. Variou tanto com ela, fez tantas diabruras, que acabou fatigado, em plena juventude. Quando olhava a Lulu, deitada, seminua, em abandono, um trecho do seio livre, o corpo ajustado em músculos sublimes, o Sanches ficava frio, gelado, indiferente. Já sabia tudo sobre aquele corpo, havia sentido a mulher em mil e um artifícios, em trilhões de caprichos. (...)

Dentro do cérebro do Sanches entrou em erupção um plano diabólico. Primeiro, foi uma ideia, depois um pesadelo, depois uma obsessão. Seria fantástico ver a Lulu espojando-se nos braços de outro homem, realizando tudo aquilo que fizera com ele, bem juntinho, para depois sacia-lo, aos berros. 

Só assim não naufragaria aquele casamento que principiara tão veloz e tão inconsequente. Um dia, falou a ela, timidamente, como se fosse uma coisa passada com outro, seu amigo, o Boião, casado também à mesma época que ele. Disse de como o Boião fazia, de como ia buscar o homem que a esposa queria e, os três juntos, de como saciavam a sua tara maldita. “Não deve ser formidável, Lulu”?, olhava de soslaio para a companheira e ficava triste vendo-a torcer o nariz: “Sujeira, Sanches! Isso é um casal sem vergonha, tarado, horrível. Que coisa!” Ao outro dia, outra tentativa. Dessa vez era com o Schultz, marido de uma alemã que tonteava os anjos. Contava tudo, exagerando as cores. “Vamos fazer igual, Luluzinha? Vai ser do arromba! Você é quem leva a vantagem!”
Refugo da esposa, reinício das operações, refugo, reinício, refugo, reinício. Até que, venceu a curiosidade. Houve o primeiro crime. Num quartinho de uma comadre, o Sanches levou a Lula, e entregou-a para o Artur, que já a esperava ali. E, assistiu tudo. O quarto humilde encheu-se de berros, de calores. Sanches, terminada a cena, avançou sobre a esposa, como um javali. Tinha atingido um grau de excitação animalesco. Revivera! Agora, sim! Nem Calígula teria outra lua de mel como a sua! Todas as semanas, conseguia um desconhecido, para deitar com a Lulu. A experiência aumentou a sua paixão pela esposa e a tornou submissa e cheia de remorsos, agasalhando-se em casa, como uma corça batida, no amplo peito do marido.

“Amanhã, vai ter mais, Lulu! Desta vez é com um português reforçado. Vou fazer tudo pra ele não faltar. Te prepara”. No dia seguinte, o festim de ébrios sexuais, um espetáculo brutal e ao mesmo tempo enlouquecedor. Lulu, que ao princípio entregava-se em silêncio, mole e passiva, já estava uma fúria, devorava o outro, mordia-o, gritava, um inferno! Um dia, Sanches voltava para casa, viu-a fechada, contornou pela cozinha e, ao chegar à alcova semiaberta, encontrou um homem, o Anastácio, crioulo da vizinhança, em conúbio com a Lulu. Quis estrilar, quis dar a bronca, um bolo de excitação subiu-lhe à garganta, esperou o término da festa, em seu próprio leito, e, depois, com uma voz meio ferida, meio descoroçoada, insinuou para a esposa, sob gargalhada do seu Anastácio:
“Mas, Lulu, a combinação era só com os homens que eu arranjasse!...”
 E ouviu, desalentado:
“Vício, meu filho. Você me viciou. Agora está na casa do sem jeito”...

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