Confesso com amargura, porquanto levou-se uma existência ou,
quem sabe, duas gerações para o início de um pedido de reconsideração de ato.
Fato: meu pai, Manuel Mendonça, quando de sua primeira viuvez, enamorou-se de
uma jovem, Lindalva Feitosa, e com ela gerou dois filhos. O mais velho, Raimundo,
nasceu em 1954 e faleceu em 1989. Depois veio uma mulher, Sonia, nascida em
1956.
Raimundo e Lindalva Feitosa |
Ninguém mais sabe o pretexto que levou o casal a não concretizar
o enlace matrimonial. As ruas de Educandos sabem que seu Manuel casou-se com
Dona Doroteia e Lindalva com seu José Viana. Assim, os filhos que se
encontravam com a mãe, foram registrados como Feitosa Viana.
A questão que ora nos impomos (junto com meus irmãos) é sanar o
afastamento que seu Manuel infligiu a esses descendentes. Não os registrou, assim
como não se preocupou com eles, afinal foram criados em outro lar. No entanto, sou
testemunha, estes filhos procuraram vez ou outra o genitor biológico.
Há dias, em conversa com meu irmão Renato, este me informou que havia
escrito uma crônica sobre nossa única irmã. Aqui vai a reprodução deste
exercício para que surta os efeitos que ansiamos: que a Sonia nos absolva pelo nosso
alheamento e desídia. Que perdoe igualmente ao nosso patriarca, o velho Manuel peruano,
morto em 2014, aos 98 anos.
UMA IRMÃ & NOVE IRMÃOS
01/11/2017
Talvez porque se aproxima o Dia de Finados — na verdade, estamos na véspera — fico mais reflexivo e procuro botar em ordem os pensamentos mais sublimes. Os diversos compromissos diários, os semanais e as contas para pagar todos os meses, nos deixam em situação pouco favorável para fazer meditações sobre a vida.
E quando acontece um pequeno gap — pode-se classificar como um momento de lucidez — nessa corrida desenfreada em que queremos competir contra o tempo, sentimos que ele transcorreu tão veloz que não nos deixou o acompanhar; tão escassos estão se tornando os nossos momentos de lazer ou de ócio, propícios para essas ocasiões, que endereçamos nossos pensamentos para outros fins, que julgamos importantes, porém, às vezes, são fúteis. E quando nos percebemos já se passou um bocado de tempo, décadas, sem nos propor a oportunidade de nos satisfazer de algum desejo íntimo, adormecido no subconsciente, e este acaba ficando ocluso dentro das obviedades da vida.
Pensei nesses dias passados, recentes, na minha única irmã no meio de nove irmãos. Uma irmã de sangue, com sangue latino, peruano e amazonense. Na única oportunidade em que me propus a conhecê-la, não lhe pude expressar o meu contentamento. Talvez porque eu, imaturo dentro dos meus trinta e poucos anos, não valorizava essas ocasiões; talvez porque ela, ainda magoada com a situação da mãe, incorrespondida no seu amor primaveril, não nos considerasse como verdadeiros irmãos. É natural, entendi assim. Mas, no raro instante que tive, fiquei olhando o seu semblante, procurando algum traço de aparência com algum dos irmãos, num tempo exíguo, mesmo assim, achei-a parecida conosco. Pode ser apenas o desejo familiar de ter uma afinidade para nos conectar no futuro.
Vale a pena registrar: fui levado pelo meu irmão mais velho, Roberto, até sua casa, próximo à familiar e íntima Rua Inácio Guimarães, no bairro de Educandos, o mesmo bairro em que nasceram os três irmãos da primeira geração. Além dela, conheci seu (e nosso) irmão Raimundo, e sua mãe, Dona Lindalva. Três pessoas honradas, partícipes da segunda geração do peruano Manoel Mendoza. Achei esse irmão muito parecido com nosso pai, posso garantir que era o mais parecido com ele, entre todos os outros nove irmãos, incluindo-me nessa amostragem.
Entre uma conversa e outra, reunidos à mesa e observando todos os movimentos familiares, fiquei a meditar o que aquela zelosa senhora representou pra mim, no auge da sua juventude, enquanto dedicava afeição e consolo ao meu pai. Deve ter me acalentado também, afinal, quando ela frequentou nossa casa, eu ainda não tinha dois aninhos; suspeitei que ela também deve ter pensado nisso, pois ficou me olhando com seu olhar cândido.
Quando voltei daquela visita, continuei a sublimar os doces momentos, buscando encontrar um motivo e oportunidade para conquistar um espaço a fim de interagir com essa segunda geração. A distância era um fardo pesado, os compromissos também, somado à falta de atitude.
Fiz, mentalmente, a relação de todos os irmãos, colocando-os na ordem cronológica de nascimento, do mais velho ao mais novo: Roberto, Henrique, Renato, Raimundo, Sonia, Manoel, Jorge, Luís, Ricardo e Carlos. Dez pessoas, dez criaturas sob as bênçãos de Deus, uma só mulher!Hoje, passada essa enormidade de tempo, sonho sempre reencontrar minha irmã Sonia, e poder lhe falar coisas que ficaram no silêncio das palavras e das atitudes não expostas naquele dia do longínquo ano do final da década de oitenta.
E desejo, com coração e fé, que ela esteja vivendo em paz espiritual, dentro do seu cosmo material.
Renato Mendonça
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