Linha do Equador refere-se ao livro de Gebes Medeiros, lançado um pouco antes. Nesse tempo, o autor, Ramayana de Chevalier, era secretário de Administração de Gilberto Mestrinho (1959-63), e escrevia para o jornal A Gazeta, cujo texto ocupava o alto da primeira página.
Este artigo, publicado em 31 de outubro, ocorreu há exatos 57 anos. Outro pormenor: não obstante as referências de Ramayana ao amigo, indicando-o ao sodalício amazonense, a posse de Gebes Medeiros na Academia de Letras ocorreu 33 anos depois, em 13 de setembro de 1994. Doutor Gebes morreu em 2003.
Foi um acontecimento singular, para a nossa pacata
vida provinciana, o lançamento do livro do escritor Gebes Medeiros [Linha do Equador]. Os homens são,
sempre, a projeção das suas obras, ou mais concisamente, um substrato daquilo
que produzem, em arte e em emoção. Estou a ver daqui, o Gebes que nos chegou de
outras paragens, tangido pelo determinismo. Era um jovem iluminado pelo
entusiasmo, cheio de uma hipertensa vontade de empolgar, de oferecer, de construir.
Ouvi falar dele, como de um arigó simpático e dadivoso. Veio de envolta com as
semicolcheias, e as da selva o retiveram, para sempre.
Gebes vinha do Nordeste. Trazia, para o meu coração,
um sinal indelével e admirável. Vinha das Alagoas, terra macha, de gente sisuda
e brava, com guelra vermelha tinta de sangue e uma lealdade de mandacaru. Também,
como ele, há muitos anos passados, descera de um navio do Lóide um alagoano
jovem, de olhos tontos de entusiasmo, de alma pura e límpida, que veio lançar raízes
no Amazonas: o meu pai.
Não se sabia o que eram os escoteiros: ele foi o segundo
a fundá-los, no Brasil. Não se conhecia um colégio exemplar, desses que formam
o caráter das gerações: ele o fundou, no “Instituto Universitário”. Casou aqui,
deu filhos a esta terra, pobres e honrados, intelectuais que se projetaram pelo
país afora. Morreu no desterro, esquecido e amado, apenas, pelos seus
descendentes e os alunos, esses grandes amigos, já hoje velhos.
Gebes Medeiros teve trajeto idêntico. Integrou-se
no Amazonas, criou raízes, ama-o do mais fundo do seu coração. É um perdulário de
iniciativas, um esbanjador de inteligência. Veio com a música, hoje está no teatro.
Lança, agora, o seu primeiro livro, Linha
do Equador é uma esplendida galeria de tipos. Compêndio de psicologia da vida
cotidiana, seus personagens emocionam e fremem, fazem pensar e sorrir. As questiúnculas
do vasto interior brasileiro, políticas ou latifundiárias, são focalizadas com
raro equilíbrio e bom senso, com pinceladas fortes e inesquecíveis.
O sangue que corre pelas páginas de Linha do Equador, ferve conosco, dá-nos
a sensação de um drama vivido, onde despontassem, como rosas do abismo, o coração
de Airam e a carreira acrobática de Alcione, a paixão estonteante de Luís
Carlos, funda, abrangente, sensual e meiga. Os perfis evocados nos entreveros
do sertão do Piauí, falam por si mesmos. São reais, como o cheiro de urina dos
seus currais perdidos.
Lançados com inteligência e arte, numa sequência que
denota o exímio teatrólogo que é Gebes, homem quase modesto nas suas
arremetidas pessoais, mas glorioso e candente nas iniciativas que visam a grandeza
do Amazonas. Lutador sem desfalecimentos, sensibilidade requintada de quem nasceu
com o choro lânguido das avoantes no beiral da casa, Gebes Medeiros é, hoje, um
patrimônio nosso, que nós não damos, nem trocamos, nem vendemos. É uma joia de caráter,
num deserto de almas.
Tenho acompanhado várias de suas singelas irradiações,
algumas com um critério absolutamente original e puro, todas cheias de coração e
de afeto. De muitos anos, venho sentindo o palpitar de sua generosidade, as lágrimas
ocultas que há vertido, no silêncio do seu lar, sitiado pela incompreensão e o
desalento. Sei de como tem sustentado a família, na luta pertinaz de sua profissão
de advogado, nos recontros em que a arte, esfarrapada, mal lhe socorre com as
espórtulas de sua glória amadurecida. Tenho por Gebes Medeiros, o respeito que
se tem por um irmão sincero, de gibão de couro, que trocou a vestimenta do agreste
pela cana da jacumã.
Gebes reuniu, no mesmo laço, as duas asas brancas:
a Academia Amazonense de Letras e o Clube da Madrugada. Viveiros de talentos, condecorações
mentais desse equador bendito, cuja linha foi traçada, com felicidade, pelo
insigne escritor que estreia. As cenas duras, ou amoráveis, do seu livro, não são
dele, são da vida. É uma técnica moderna: o de projetar os fatos, na sua nudez,
sem os artifícios hipócritas da literatura ultrapassada.
O amor há de ser tão puro e tão nefasto, como se
apresenta. Um beijo não tem roupas. Um homem que ama, não possui códigos, nem
respeita conveniências. Punem-no, mas por fora. Por dentro, ele continua
perfeito e agreste, como no limbo. Este aspecto de literatura leal nós sentimos
no livro de Gebes. Um lançamento emocionante, para uma época de descréditos espirituais
e desavenças mesquinhas.
Gostaria de ver esse amazônida integrado, ocupando
o lugar que merece numa poltrona da Academia. Meu voto está dado. Sem máscaras,
sem conciliábulos, sem falsidades. À vista do público, como as maioneses de
lagosta do Restaurante Leite, do Recife. E não se trata de uma explosão de
amizade. Gebes Medeiros é um escritor completo, um artista no mais amplo
sentido da palavra. *
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