Tenho uma obrigação semanal, na quarta-feira vou à reunião dos filatelistas, ali na praça do Congresso. Bem ao lado de nosso conclave existe uma casa antiga, que vem recebendo nova decoração, por isso mais elegante ainda. Fiz uma foto e envie para meu irmão Renato, lembrando-lhe que ali nossa Dona trabalhou como doméstica. A casa era (ou ainda é) da família Bulbol.
Residência dos Bulbol, na Praça do Congresso |
Renato retrucou, relatando
a visita que fez a esta residência – aos sete anos - junto com nosso pai, então
pretendente da colaboradora (usando uma expressão corrente). Foram recebidos
com cortesia, porém, receados pelo patrão. Confessou-me a nostalgia que tomou em
virtude da foto e do relato que travamos.
DONA DOROTÉIA
19|11|2002
Renato Mendonça
Chamou-me atenção a data de hoje,
ao preencher um documento. Lembrei-me do aniversário de Dona Dorotéia — um dos
meus anjos, exaltados em crônicas anteriores — que nos deixou há dez anos.
Pessoa maravilhosa com quem eu convivi intensamente dos oito aos dezoito anos. Depois o acaso tratou de nos afastar. Era minha madrasta — palavra que sempre detestei pela aspereza da pronúncia e porque parece trazer no seu bojo um sentido cruel e uma falta de carinho no tratamento. Esse substantivo não lhe caía bem. Não teve o carinho e afeto específico de uma mãe biológica, porque além de mim, teve outro tanto para criar, porém, compensou com a dedicação e o zelo típico das pessoas de bom coração, sem deixar que eu notasse alguma discriminação pelo fato de ser adotivo.
Contribuiu enormemente na minha
educação e me apoiou nas horas mais difíceis. Era uma mulher ativa, excelente
dona-de-casa e cozinheira, com uma determinação fora do comum.
Decidimos, instintivamente, mudar
seu nome de tratamento para simplesmente “Dona”. Um nome mais curto nos
aproximava um pouco mais. Depois, com o passar dos anos, carinhosamente a
chamávamos de “Doninha”. O diminutivo lhe engrandeceu ainda mais, e nos colocou
— eu e meus irmãos da primeira geração — sob sua proteção. Nos últimos anos de
vida ainda voltou a estudar, e se aculturou um pouco mais.
Ela morreu precocemente, vitimada
por um câncer no pulmão sem nunca ter experimentado um cigarro. São os
desígnios de Deus. Não vamos cobrá-Lo nenhuma explicação, óbvio. Foi embora,
mas deixou lições e ensinamentos. Fatos pitorescos que ficaram gravados no
nosso álbum de recordações.
Num dia de minha infância, quando
criávamos galinha no quintal para comer, ou vender — quando a situação estava
preta —, acidentalmente uma pisou um dos seus pintinhos e quebrou-lhe a perna.
Fiquei apavorado sem saber o que fazer quando vi aquela fratura exposta. Levei-o
até ela, imaginando que o pintinho seria sacrificado. Na mesma hora ela tentou
tracionar a perna do pintinho para tentar recolocar o local da fratura em
situação de engessar. O pintinho “berrava”. Não foi possível porque já havia
passado algum tempo, e o tendão tinha se comprimido. A alternativa que ela
encontrou foi cortar o pequeno pedaço do ossinho que sobrava. Cortou-o com uma
tesoura de unha. Em seguida pegou dois palitos de fósforo e fez uma tala.
Recolocou o pintinho com sua mãe como se fosse coisa mais natural possível.
Para minha surpresa, meses depois
aquele pintinho tornou-se o galo do terreiro e não teve nenhuma sequela. As
duas pernas do animal ficaram rigorosamente iguais. Milagre? Não sei. (...)
E assim levou sua vida. Alegre,
sempre disposta. Gostava de, aos domingos, preparar uma comida especial. Gorda,
não se incomodava com isso. Não fazia dieta e, sempre que tinha oportunidade
compartilhava com a gente uma caipirinha ou uma cervejinha, apenas para ficar
mais contente.
Nos últimos anos a vimos perder
peso, fustigada pela doença e pelas internações. Não se entregou em nenhum
momento. Tinha sempre a esperança e a fé de curar-se. Era católica fervorosa.
Deixou-nos um legado: a alegria de viver e a resignação com as adversidades da
vida, que ela nunca reclamava.
Deus a guarde em um lugar de
refrigério, de luz e paz. Amém.
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