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A partir da esquerda, Roberto, autor do post, Romeu Medeiros, comandante da PMAM, e Ilmar Faria, em Fortaleza, em 1989 |
Guardava
este texto para homenagear ao saudoso colega de farda caqui, da Polícia Militar
do Amazonas, Ilmar Faria, quando anteontem desapareceu de nosso convívio outro
companheiro, coronel Edson de Lima Matias. Possuidor de portentosa cabeça e
farta cabeleira, autêntico cabeção,
que aquele não perdoou com sua capacidade inventiva, a de espalhar apelidos por
onde passava. Creio que sua inspiração faz jus a um catálogo.
Eu conheci
seus feitos nas hostes militares, todavia, desconhecia a gênese de sua verve,
que o texto de Ribamar Bessa (publicado em 3 de janeiro, no Diário do Amazonas) esclarece. Não
perdoava ninguém. Por onde passou, nos cursos policiais, na administração
estadual, sempre que possível marcava os colegas com sua inspiração.
No próximo
mês, a turma Ajuricaba, do Núcleo de Preparação
de Oficiais da Reserva (NPOR), completa meio século de formatura, solenidade celebrada
no pátio do 27 BC (hoje 1º BIS). O baile aconteceu nos salões do Ideal Clube,
ali onde o Ilmar Faria dançava e dublava os rocks, a sensação que invadia a
cidade, e conquistava os jovens. E éramos todos jovens, lembra Bessa; todos “brasas”,
cantava RC.
Eu participo
dessa Turma, vindo do Seminário São José, ao lado do Ilmar, do Osório, do
Amilcar, relembrando alguns alunos do Colégio Estadual do Amazonas. A festa do
cinquentenário já começou com uma atração brasiliense, a presença do colega
Waldir Ferreira, vai prosseguir para bem marcar a efeméride.
À brilhante crônica de José Ribamar Bessa:
O Quinto Mosqueteiro da Amazônia
Sempre
soubemos que os três mosqueteiros do romance de Alexandre Dumas eram, na
realidade, quatro. O que ninguém sabia, mas agora eu conto, é como que havia
mais um, vindo da Amazônia, que só foi anunciado ao mundo em 1963: Olha o
quinto Mosqueteiro!!!
O grito
ecoou na escadaria do Colégio Estadual do Amazonas, em Manaus, e rolou degraus
abaixo até o portão onde eu estava e me atingiu como um soco no peito. Lá em
cima, esgrimindo uma espada imaginária, Ilmar Faria, o temível criador de
apelidos, apontava para mim, que me tornara o centro das atenções, salientando
que a manga comprida da minha camisa era igual à de um espadachim. O quinto
mosqueteiro era eu. Ilmar acertara, mesmo sem saber de onde viera aquela manga
folgada de guarda do rei da França.
A camisa
viera de um beco lá do bairro Aparecida, onde uma vizinha solidária, ao saber
que eu faltara à aula por não ter farda, deu a minha mãe uma camisa velha de
seu sobrinho. Sendo o defunto bem maior, dona Elisa teve que reciclá-Ia, de
noite, às pressas, à luz de lamparina, numa máquina Singer. Com a vista
cansada, inverteu a manga direita, costurando-a com a carcela pra cima. De
manhã, já não havia tempo de desfazer o erro. Vesti assim mesmo, abotoei o
punho e girei o tecido, botando a abertura pra baixo, o que formou uma manga
bufante, cheia de rugas em volta do braço.
Lendo Camões
Embombachado,
sai para a escola, onde ganhei aquele apelido cruel, mas tão engraçado que meio
século depois insisto em recordá-lo. Com isso, perco o amigo, mas não a piada,
com um agravante: o amigo perdido, neste caso, sou eu, o melhor amigo de mim
mesmo. Hoje seria bullying, mas foi
brincadeira tão efêmera que só durou “o espaço de uma manhã”.
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Coronel Ilmar Faria, |
Outros
apelidos inventados por Ilmar sobreviveram mais tempo, como os dos bedéis
“Pierre Pirrocá” e “Bunda-de-Aço”, ou o da professora de Filosofia, Lindalva
Mota, alcunhada de “Por-conseguinte-então” ou “Silogismo”. Era a cara dela.
Professor da mesma disciplina, cônego Walter, cujas aulas nos levavam a crer
que "Filosofia é a ciência com a qual ou sem a qual a gente fica tal e
qual", ficou sendo “Vavá Tal-e-Qual”.
Todos os
colegas tinham apelido. Um deles surgiu em aula memorável de Literatura
Portuguesa do professor e poeta Farias de Carvalho. Aula é um modo de dizer.
Ele não dava aula. Declamava. Era ator performático, usava todos os recursos
corporais, as bochechas infladas, as mãos fartas, o olhar penetrante, o riso
sardônico. Parecia Orson Welles, no físico e no espírito: charmoso e
provocador, obeso, corpulento, carismático.
Nesse dia
em que ditava um ponto sobre Os Lusíadas,
Farias estava com a macaca solta. Burlesco e farsante, declamava "as armas
e os barões assinalados", enquanto nós copiávamos o que ele falava: “Os
Lusíadas”, a epopeia de uma raça, poema épico humanista, com dez cantos, 1.102
estrofes num total de 8.816 versos decassílabos...
Foi interrompido
por um colega:
-- Desculpa, professor, mas o senhor já leu TUDO ISSO?
-- Eu vou lá perder o meu tempo com uma meeeeerda deeesta - vociferou Farias, advertindo que não era para
copiar aquela frase. Fechou parêntese e com voz impostada cheia de teatralidade
continuou:
-- Luiz Vaz de Camões, gênio lusitano, relata o assassinato de Inês de
Castro, episódio que simboliza a força do amor e a dor da morte. Com um olho
só, via mais longe do que qualquer homem do seu tempo.
Na sequência,
revelou que Camões perdera o olho direito numa batalha. A aula não havia
terminado e um papelzinho já circulava de uma carteira à outra, batizando de Camões nosso colega Flávio Farias, que
era cego de um olho. Aí foi bullying mesmo.
Três
Farias
Eram três
Farias do Curso Clássico agora em outras órbitas. O primeiro a se despedir foi
Carlos Farias Ouro de Carvalho (1930-1997), que nos deixou vários livros de
poemas, entre os quais Pássaro de cinza
(1957) e Cartilha do bem amar com lições
de bem sofrer (1965). Hoje empresta seu nome a uma Escola Municipal de
Manaus situada no Monte das Oliveiras.
O segundo
foi Ilmar Faria (1946-1999), que morreu como coronel. Depois de ser Oficial da
Reserva (NPOR), ingressou na Policia Militar. Tentou carreira política como candidato
a vereador. Perdeu. Desistiu. Foi Secretário de Segurança Pública. O governo do
Estado construiu quadra esportiva na Manaus Moderna e deu o nome do coronel a
ela [hoje, no local, encontra-se a 24ª
DIP].
O terceiro
foi Flávio Farias (1946-2015) falecido recentemente numa sexta-feira, 13 de março.
Cursou jornalismo, em São Paulo, trabalhou em vários jornais de Manaus e foi
professor do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Amazonas.
Lembrei
dos três Farias, porque voltando de Brasília, há duas semanas, sentou-se ao meu
lado no avião um jovem que era a cara do Ilmar. Quase pergunto se ele ainda
dançava e dublava os sucessos da época, especialmente Jorge Ben, Chubby
Checker, Ray Charles e os Beatles, que cantávamos em sala de aula, quando
faltava um professor.
Há meio
século, em dezembro de 1965, éramos todos jovens e concluíamos o Curso Clássico
no Colégio Estadual do Amazonas. Depois de convivência diária de três anos,
nossos destinos ali se separaram, cada um tomou seu rumo. Quantos ainda estão
vivos? A contagem do tempo na passagem de ano remete ao Ocaso, de Farias de Carvalho:
Meus mortos hão de vir no fim da tarde.
Aguçai vossos dentes, cães do
tempo,
vamos comer a morte no crepúsculo".