CATANDO PAPÉIS & CONTANDO HISTÓRIAS

sexta-feira, fevereiro 05, 2016

PERÍCLES MORAES & HUGO BELLARD

Em nossos dias, são raros os que conhecem essas duas figuras de nossas letras. O primeiro, que foi membro e presidente da Academia Amazonense de Letras, segue
Pericles Moraes
lembrado por seus pares. Bellard, autor de romances e poemas na década de 1940, segue cada vez mais esquecido.


Reproduzo em duas partes, artigo de Moraes sobre Bellard, quando este produziu dois trabalhos em poesia, que permitiram conquistar a amizade de Moares e seu ingresso na Casa de Adriano Jorge.

REFLEXÕES SOBRE UM POETA

Nesta olimpíada literária em que concorreram os valores concretos da mentalidade amazonense, nas letras e nas artes, disputando a glória de celebrar, no seu primeiro centenário, os brasões ilustres da cidade excelsa que Lobo d'Almada implantou nos confins do Brasil, houve uma inesperada revelação, entre os mais afoitos competidores: o poeta Hugo Bellard.

Esse artista, quase desconhecido em nossos círculos intelectuais, que esquece as ardentias da juventude refugiado na aridez de um estabelecimento bancário, lidando com cifras e oscilações monetárias, exsurge de repente, numa demonstração de inteligência e vitalidade, transudando talento por todos os poros, dominado pelo anseio de sobreviver pelos imperativos de sua obra.
Eu mesmo só de nome o conhecia. Recordo-me que, certa noite, sem nenhuma apresentação, ele me visitara para presentear-me com uma "plaquette" de sua autoria sobre Tiradentes. O seu rosto ascético de uma palidez de mate, a calvície precoce e reluzente, o olhar inquiridor e voluntarioso, a prosa eloquente e abundante, as faculdades emotivas apuradíssimas, tudo isso dava-me a lembrar aquele franciscano excêntrico da sátira de Mirabeau, que fugira do seu convento silencioso para, distante da solidão, num clima de morbidez pecaminosa, aprimorar e requintar a exaltação de todos os sentidos. Acudiu-me de súbito esta reminiscência literária quando o vi pela primeira vez.

O poemeto, lido logo depois, completou a impressão que me deixara o seu espírito, apesar de tê-lo recebido com precavida desconfiança. Tratava-se, evidentemente, de um artista raro, possuído do instinto da beleza e embriagado pelas paisagens exóticas, que se coloriam com a sonoridade e a opulência das rimas.

Seus versos nobres e harmoniosos agradaram em cheio. Todas as almas e todos os corações se abriram escancaradamente para o poeta. Os críticos e a imprensa desbordaram-se em louvores, glorificando o citaredo, que parecia inoculado daquele bonheur litteraire, cujo segredo, no seu mecanismo psicológico, foi descoberto por Gourmont, ao destroçar os idólatras de Edmond Rostand.
Vieram depois as comemorações do Centenário de Manaus. O milagre da criação fecundava-lhe o espírito. Não haveria outra oportunidade melhor para tentar um surto mais altaneiro, que lhe consagrasse definitivamente o nome. O poeta não a deixou escapar.

Enfronhando-se nas bibliotecas, manuseando arcaicos palimpsestos, revolvendo estudos e memórias inerentes aos aborígenes, vasculhando a poeira dos subsidias históricos, lograra pacientemente adquirir a matéria prima indispensável às colunas mestras do monumento em via de realização.Depois de curta ausência, Hugo Bellard reapareceu no meu gabinete para recitar os alexandrinos translúcidos e perfeitos de Ajuricaba, que assim se intitulava o seu novo poema. Ouvi-lhe religiosamente a leitura e convenci-me de que, lealmente, eu me defrontava com um poeta de extrema sensibilidade, susceptível de interpretar a alma heroica dos homens, desvendando-lhes as dúvidas e os sofrimentos por entre as luzes ofuscantes de suas construções métricas.

Não era apenas um artista sensível à disciplina e ao encadeamento logico da ação, que se desenvolve no seu poema refletindo-lhe as próprias emoções. Hugo Bellard, além do mais, se assenhorava de uma nova concepção arquitetural do vale amazônico, descrevendo-o em todo seu esplendor bárbaro.
O que surpreende desde logo na arte deste "ensorceleur" é a sua intuição objetiva, posta à prova no discernimento com que, ao plasmar os mistérios e as alucinações da floresta virgem, contorna os perigos do exagero. Se tivesse autoridade, eu colocá-lo-ia, tal a força viva de seu poder de exteriorização, ao lado dos grandes interprestes da Amazônia: de Alberto Rangel e de Alfredo Ladislau, entre os mortos, e dos senhores Ferreira de Castro e de Ramayana de Chevalier, o nosso esplendido Ramayana, de No circo sem teto da Amazônia, entre os vivos. Porque esse poema, só por só, define uma personalidade de exceção. (segue)


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