Recolhido do São João del Rey Blog, gentilmente enviado por (fjsbraga@gmail.com), compartilho o poema do saudoso “caboco” Áureo Mello (1924-2015), nascido em Santo Antônio do Madeira (MT). Como se verá, estudou as primeiras letras em Guajará-Mirim (RO) e depois foi morar com a família em Santa Fé, às margens do rio Guaporé. Dali, regressou à Porto Velho e, desta cidade, à Manaus, onde cursou o primário no Grupo Escolar Cônego Azevedo, o secundário e o pré-jurídico no Colégio Dom Bosco e o de Direito na Faculdade de Direito do Amazonas.
Áureo Bringel de Mello |
Jornalista desde jovem, iniciou com a
coluna "Luva de Seda", no Diário da Tarde, de Manaus. Dali,
passou a editorialista em O Jornal, de Aguinaldo Archer Pinto. Em
seguida, foi redator-secretário e locutor da Rádio Baré, dos Diários Associados
do Amazonas.
Eleito Deputado Estadual aos 22 anos, e reeleito no quatriênio seguinte, seguiu eleito Deputado Federal, sempre pelo PTB, exercendo este último mandato pelo Rio de Janeiro. Enfim, eleito Senador pelo Amazonas tomou parte na Constituinte de 1988, concluindo seu mandato em 1995.
Publicou, entre outros, os livros: Luzes tristes (1945); Claro-escuro (1948); Presença do estudante Inhuc Cambaxirra; As aureonaves (1985); Inspiração em três tomos (1989); O muito bom sozinho (2000); Como se eu fosse um cantador (1999); Onde está Gepeto? (1999); Heliotrópios adamantinos lácteos: suco de estrelas (2004).
O poema intitula-se
POESIA DA ENCHENTE, e não poderia ser mais significativa para o momento,
quando Manaus assiste a maior elevação das águas do rio Negro, desde sua conhecida
anotação. O melhor que o autor o escreveu com o emprego de termos de nosso
caboquês. Pode ser um tanto incompreensível para os não iniciados, mas valeu, Áureo
Mello.
POESIA
DA ENCHENTE
— Tu tá veno, cuirão? Tu tá veno, José?
Eu num disse qui a inchente esse ano era braba?
Cadê tua juta agora? Eu quero vê cumo é
Qui vai-se arisurvê! Suco! Água qui nunca acaba!"
E o rio vai galgando as carnes do barranco
Cobrindo os capinzais, os troncos assediando,
Seguindo, mata a dentro, em desmedido arranco,
Aos lagos e igapós as águas germinando...
Estão mortos jutais, as plantações tombadas,
As casas se-mostrando, à flor do lençol tétrico,
E hercúleo e caudaloso, o rio, em rabanadas,
Avança, vale a dentro, o corpo quilométrico...
O Amazonas cresceu, nestes meses pioneiros
E ainda mais crescerá, nos meses que hão de vir.
Nesse anseio de criar que estremece os banzeiros
O gigante brutal somente faz destruir...
O rio é largo e belo, é como um canto errante
Da natureza, entoado em plena tempestade.
O ventre colossal vibra, enfunado, arfante
E rola os vagalhões com lenta majestade...
Na superfície, ao sol, balseiros, velhos troncos,
Em lenta procissão vão demandando o mar.
O vento é frio, e é forte. As vagas soltam roncos
E espumam, são cristais se esfacelando no ar...
A selva assiste a marcha eterna da corrente
E é bela, é moça, é verde, é viva e misteriosa...
A coma é seiva e luz, mas lôbrego e silente
É o fundo coração dessa floresta umbrosa...
As aves vêm valsar nas margens, de beleza
Criando, contra o céu, figurações ideais,
E segue, assim, vibrando, a enorme correnteza
Entoando um cantochão entre sons festivais...
O crepúsculo é um sonho, é uma paisagem linda
De ouro e coral e azul e espelhos de cristal
A alma se enleva e ajoelha, e esse enlevo não finda
Quando nos céus se espalha a noite equatorial...
Mas... o monstro subiu trinta metros ao todo,
E as matas invadiu, as várzeas submergindo.
Terra firme é bem pouca. O gado está no lodo
O vento sopra, e soa a inúbia dos rebojos,
A água sinfonizando em gorgolões sombrios...
O pensamento sobe, em místicos arrojos
E mergulha depois na esteira dos navios...
Ou triste, a se imprensar nas marombas, mugindo...
E o caboclo? O mongol calado da restinga?
Onde está o oriental do "jaticá", do arpão?
Campeão dos matupás, batalhador da aninga
Rei completo do anzol, da rede e do facão?
Onde está o grande herói que na proa da sua
"Montaria" partiu pra pescar jacaré?
Onde o veste-de-trapo, o João-ninguém que à lua
E ao sol trabalha e luta, alentado a "chibé"?
Onde é que você está, meu bravo amazonense,
Que mergulha no barro arrancando o jutal?
Onde é que você está, nordestino, cearense
Que caboclo ficou nas lides da jangal?
Está no pastoreio ao gado? Na caçada?
Cortando canarana ou lançando o espinhel?
Virando tartaruga à praia? Na queimada?
Ou foi pro seringal, representando Abel?
Qual o quê! O caboclo, encorujado a um canto
Está, qual um Noé, sozinho no Dilúvio.
Sem casa, sem vintém, tendo a vida, se tanto
Nada pode fazer contra o inimigo plúvio...
Plantar roças sobre água? Impossível! Pescar
Ele o pode fazer, mas com dificuldade.
Que lhe resta, afinal? É remar, é remar
E ir, como outro já fez, mendigar na cidade...
"Vucê, se me ajudá, cumpatrício do sur,
Vai ganhá de presente umas cuisa incantada:
Vú mandá pra vucê, já "feito", irapuru
E olho de buto, viu? Suco! Inchente zangada!"
Fonte: Áureo Mello INSPIRAÇÃO (Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1989).
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