Padre Nonato Pinheiro (*)
Padre Nonato Pinheiro, 1952 |
Tive
duas convivências com o famoso filho de Dom Bosco. A primeira é concernente à
quadra de estudante, de 1933 a 1938, no diretoriado do padre Lourenço Gatti,
que sucedeu ao santo padre Pedro Ghislandi. Ensinava-nos Religião. Apesar da
austeridade da disciplina, se nos instruía com segurança e profundeza na
doutrina cristã, sabia divertir-nos com o seu bom humor, que era simplesmente
fabuloso. De uma feita ouvi-lhe dos lábios: “No Brasil, para tudo se usam selos
de educação e saúde, e não há saúde nem educação”... Doutra vez, assistindo a
uma algarraza de colegiais, assim falou: “Na bandeira brasileira está escrito
Ordem e Progresso. No coração do brasileiro leio Desordem e Regresso...”
Na
segunda convivência já era eu sacerdote. Estávamos sempre juntos, como também
pela circunstância do cargo que desempenhava, de secretário do Bispado, na
administração diocesana do saudoso Dom João da Mata Andrade e Amaral. Quando
este foi transferido para Niterói, lembro-me de que fui eu quem lhe deu a notícia
da eleição episcopal de Dom Alberto Gaudêncio Ramos. Padre Estélio não conhecia
o novo bispo, saído do clero secular da Arquidiocese de Belém. Aproveitou os
nomes dos dois antístites para um trocadilho, que provocou risos ao próprio Dom
Alberto: “Olhe, padre Nonato: para fazer uma mata, só muitos ramos...”
Ouvi
magníficos sermões e panegíricos do padre Estélio Dálison. Os noivos da
aristocracia social procuravam-no para abençoar as núpcias. Essas alocuções matrimoniais
eram sempre cintilantes. Nos últimos anos de vida, proferiu duas soberbas orações
gratulatórias: nas bodas de ouro sacerdotais do seráfico frei Domingos de
Gualdo Tadino, capuchinho, e na 1ª Missa Solene do padre Mário Balbi, salesiano
amazonense. Funcionei como diácono, e ainda retenho o texto da alocução: “Sacerdos
– sacer dos, sacra dans” (Sacerdote --
dote sagrado, dador de sacralidades).
Se
no púlpito empolgava, na conversação fascinava. Era um encanto a palestra do
padre Estélio: pela viveza, pelo humor, pela ironia. Quando completou 60 anos,
anunciou que havia descoberto um meio de não passar dos 60. No ano seguinte, ao
raiar o dia 24 de setembro, sua data genetlíaca, declarou: “Estou descendo. Hoje
festejo meus 59 anos. Para o ano, 58...”. Padre Agostinho recebeu a notícia com
uma boa risada.
Seus
últimos anos foram de intenso trabalho. Além de diretor, era também o prefeito
ou ecônomo do estabelecimento. E muitas vezes o vi na livraria do colégio, a
vender o material escolar e as guloseimas. Um dia fui celebrar na igreja de Dom
Bosco. Ao dirigir-me para o refeitório, surpreendi-o na livraria. Chamou-me: “Tenho
um presente para você. É a pastoral do bispo X. Não sou lá grande admirador de
Sua Excelência, e sei que o Espírito Santo às vezes se engana, leve a Pastoral
para o seu arquivo eclesiástico”.
Padre
Estélio foi um grande apreciador de laranjas. Gostava de saboreá-las pela
manhã, antes do café. Enalteceu-me mais de uma vez o teor vitamínico da
laranja, sua fruta preferida.
Já
devo atingir o objetivo dessas linhas: revelar o poeta padre Estélio. Para muitos,
sei que será realmente uma revelação. Padre Estélio foi poeta, e poeta
primoroso. Poetava, porém, clandestinamente, sem exibir a ninguém a prata de
copela e o ouro fulvo de sua finíssima inspiração. Transcreverei uma joia de
seu estro poético, uma linda poesia sacra, cujos originais me foram confiados
pelo meu dileto padre Agostinho, logo depois das exéquias solenes em sufrágio de
sua alma, em que tive a honra de proferir a Oração Fúnebre.
Guardo
a poesia desde 1949. Doze anos decorridos, tive a ideia luminosa de publicá-la,
para maior conhecimento da inspiração e sensibilidade do autor, revelando ao
Amazonas o poeta, pois só o conheciam como palestrador cintilante e orador
primoroso.
Eis
a formosa poesia, que demonstra e documenta a delicadeza de sua alma de esteta
e a mira de seus sublimes ideais:
ASPIRAÇÕES
Ardem
gotas de luares
nos
altares
onde
se esconde Jesus;
e
luzem nos peitos crentes,
resplentes,
as
alvoradas da Cruz.
Não
quero a festa obscena,
que
envenena,
como
o beijo do traidor.
Quero
o prazer puro e calmo,
como
o salmo,
que
rezo aos pés do Senhor.
Não
quero os fátuos clarões
de
ilusões
que
matam para viver.
Quero
afetos sem escória,
quero
a glória,
quero
vencer ou morrer!
Teria
sido a única poesia do padre Estélio, em língua portuguesa? Não o creio. O artista
certamente lapidou outras preciosidades para depois destruí-las num rasgo de
insatisfação e humildade. Como quer que seja, Adriano Jorge e Péricles Moraes
sabiam-no primoroso homem de letras. Este último revelou-me, mais de uma vez: “Tê-lo-íamos
eleito para a Academia se o português fosse sua língua materna”.
Essas
linhas são de comovida homenagem à sua prefulgente memória, cujo clarão jamais
se extinguirá.
(*) O Jornal. Manaus, 31 de dezembro de 1961.
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