CATANDO PAPÉIS & CONTANDO HISTÓRIAS

sexta-feira, julho 26, 2013

PADRE ESTÉLIO DÁLISON

Padre Nonato Pinheiro (*)

Padre Nonato Pinheiro, 1952
Padre Estélio Dálison continua vivo no meu coração. Não consigo esquecê-lo, tão fortes foram os laços que nos uniram em vida. Nascido no Uruguai, na Colônia do Sacramento, veio para o Brasil no vigor da mocidade assimilando tão bem o português, que o falava e escrevia como se fosse sua língua materna, o harmonioso idioma de Cervantes. Em 1922, ano do meu nascimento, padre Estélio Dálison recebia o sacerdócio em Roma, com outros três salesianos. Em 1930, chegava a Manaus, logo dominando os círculos sociais e intelectuais com o esplendor de sua eloquência. O verbo caía-lhe dos lábios em cascatas de prata, em catadupas de ouro. Nesse mesmo ano recebia eu de suas mãos a primeira comunhão.

Tive duas convivências com o famoso filho de Dom Bosco. A primeira é concernente à quadra de estudante, de 1933 a 1938, no diretoriado do padre Lourenço Gatti, que sucedeu ao santo padre Pedro Ghislandi. Ensinava-nos Religião. Apesar da austeridade da disciplina, se nos instruía com segurança e profundeza na doutrina cristã, sabia divertir-nos com o seu bom humor, que era simplesmente fabuloso. De uma feita ouvi-lhe dos lábios: “No Brasil, para tudo se usam selos de educação e saúde, e não há saúde nem educação”... Doutra vez, assistindo a uma algarraza de colegiais, assim falou: “Na bandeira brasileira está escrito Ordem e Progresso. No coração do brasileiro leio Desordem e Regresso...”
Na segunda convivência já era eu sacerdote. Estávamos sempre juntos, como também pela circunstância do cargo que desempenhava, de secretário do Bispado, na administração diocesana do saudoso Dom João da Mata Andrade e Amaral. Quando este foi transferido para Niterói, lembro-me de que fui eu quem lhe deu a notícia da eleição episcopal de Dom Alberto Gaudêncio Ramos. Padre Estélio não conhecia o novo bispo, saído do clero secular da Arquidiocese de Belém. Aproveitou os nomes dos dois antístites para um trocadilho, que provocou risos ao próprio Dom Alberto: “Olhe, padre Nonato: para fazer uma mata, só muitos ramos...”

Ouvi magníficos sermões e panegíricos do padre Estélio Dálison. Os noivos da aristocracia social procuravam-no para abençoar as núpcias. Essas alocuções matrimoniais eram sempre cintilantes. Nos últimos anos de vida, proferiu duas soberbas orações gratulatórias: nas bodas de ouro sacerdotais do seráfico frei Domingos de Gualdo Tadino, capuchinho, e na 1ª Missa Solene do padre Mário Balbi, salesiano amazonense. Funcionei como diácono, e ainda retenho o texto da alocução: “Sacerdos – sacer dos, sacra dans” (Sacerdote  -- dote sagrado, dador de sacralidades).

Se no púlpito empolgava, na conversação fascinava. Era um encanto a palestra do padre Estélio: pela viveza, pelo humor, pela ironia. Quando completou 60 anos, anunciou que havia descoberto um meio de não passar dos 60. No ano seguinte, ao raiar o dia 24 de setembro, sua data genetlíaca, declarou: “Estou descendo. Hoje festejo meus 59 anos. Para o ano, 58...”. Padre Agostinho recebeu a notícia com uma boa risada.

Seus últimos anos foram de intenso trabalho. Além de diretor, era também o prefeito ou ecônomo do estabelecimento. E muitas vezes o vi na livraria do colégio, a vender o material escolar e as guloseimas. Um dia fui celebrar na igreja de Dom Bosco. Ao dirigir-me para o refeitório, surpreendi-o na livraria. Chamou-me: “Tenho um presente para você. É a pastoral do bispo X. Não sou lá grande admirador de Sua Excelência, e sei que o Espírito Santo às vezes se engana, leve a Pastoral para o seu arquivo eclesiástico”.

Padre Estélio foi um grande apreciador de laranjas. Gostava de saboreá-las pela manhã, antes do café. Enalteceu-me mais de uma vez o teor vitamínico da laranja, sua fruta preferida.

Já devo atingir o objetivo dessas linhas: revelar o poeta padre Estélio. Para muitos, sei que será realmente uma revelação. Padre Estélio foi poeta, e poeta primoroso. Poetava, porém, clandestinamente, sem exibir a ninguém a prata de copela e o ouro fulvo de sua finíssima inspiração. Transcreverei uma joia de seu estro poético, uma linda poesia sacra, cujos originais me foram confiados pelo meu dileto padre Agostinho, logo depois das exéquias solenes em sufrágio de sua alma, em que tive a honra de proferir a Oração Fúnebre.

Guardo a poesia desde 1949. Doze anos decorridos, tive a ideia luminosa de publicá-la, para maior conhecimento da inspiração e sensibilidade do autor, revelando ao Amazonas o poeta, pois só o conheciam como palestrador cintilante e orador primoroso.

Eis a formosa poesia, que demonstra e documenta a delicadeza de sua alma de esteta e a mira de seus sublimes ideais:

ASPIRAÇÕES

Ardem gotas de luares
nos altares
onde se esconde Jesus;
e luzem nos peitos crentes,
resplentes,
as alvoradas da Cruz.
 

Não quero a festa obscena,
que envenena,
como o beijo do traidor.
Quero o prazer puro e calmo,
como o salmo,
que rezo aos pés do Senhor.


Não quero os fátuos clarões
de ilusões
que matam para viver.
Quero afetos sem escória,
quero a glória,
quero vencer ou morrer!

 
Teria sido a única poesia do padre Estélio, em língua portuguesa? Não o creio. O artista certamente lapidou outras preciosidades para depois destruí-las num rasgo de insatisfação e humildade. Como quer que seja, Adriano Jorge e Péricles Moraes sabiam-no primoroso homem de letras. Este último revelou-me, mais de uma vez: “Tê-lo-íamos eleito para a Academia se o português fosse sua língua materna”.

Essas linhas são de comovida homenagem à sua prefulgente memória, cujo clarão jamais se extinguirá.

(*) O Jornal. Manaus, 31 de dezembro de 1961.

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