Conto de L.
Ruas (*)
Padre Luiz Ruas |
Quando
ouviu o ruído de uma chave sendo introduzida na fechadura,
por
uma dessas intuições inexplicáveis do coração, ela não pensou que se tratasse
de um salteador, mas de alguém que estava acostumado a fazer inúmeras vezes aquele
mesmo gesto.
-- É ele, pensou.
E
conservou-se imóvel na cadeira perto do quebra-luz. Apenas repousou o
livro sobre as pernas e retirou os óculos.
Como
há vinte anos, depois do jantar, ela se sentava naquela cadeira e ficava lendo
ou bordando alguma coisa. Passados quinze ou vinte minutos, a empregada lhe
dizia boa-noite e fechava a porta atrás de si. Ela ficava só com o seu
silêncio.
No
começo foi muito difícil. Foi muito difícil mesmo. Muitas vezes esperava que a empregada saísse logo e,
apenas a porta se fechava atrás dela, o pranto irrompia incontrolável. Não foi
nem uma nem duas vezes que ela pensou em se vestir e ir para a rua. Ao cinema, ao
teatro ou a um bar. Uma noite chegou mesmo a subir ao quarto, abrir o
guarda-roupa. Mas, depois, se sentou na cama larga e macia e tão vazia e chorou
até o sono chegar. Seus pais vieram buscá-la.
--
Que vai você ficar fazendo sozinha nesta casa? Você pode
recomeçar uma vida nova. Você ainda é muito jovem.
recomeçar uma vida nova. Você ainda é muito jovem.
Naquele
tempo era mesmo. Sete anos mais moça do que ele, poderia
muito bem, como diziam seus pais, ter recomeçado uma vida nova. Poderia ter
viajado. Ido para a Europa. Ou para os Estados Unidos. E lá, recomeçado uma
vida nova. O que, porém, parecia tão fácil para os outros, lhe era
infinitamente difícil. Não teria coragem. Não teria forças.
E
se deixou ficar sentada naquela cadeira. Com a cabeça entre as mãos, apenas
ouviu o rumor dos passos de seu pai e de sua mãe que se dirigiram, em silêncio,
para a porta que se abriu e fechou. Quando sentiu a porta fechada, levantou os
olhos e ficou olhando-a. E pensou consigo mesma sem dizer nada:
--
Eu sei que ele vai voltar.
O
que mais a torturava, de início, era o medo. Sempre fora medrosa. Era um
sentimento que nunca chegara a vencer. Quando menina tinha medo de tudo e não
podia dormir sem que sua mãe se sentasse à beira da cama e aí ficasse até que
dormisse completamente. A luz ficava sempre acesa. Quando ficou mocinha o medo
continuou a persegui-la.
Casou-se.
E as piores horas de casada eram as horas das noites em que ele voltava tarde
do clube. Duas horas da manhã e ela sem poder dormir. De medo.
Naquela
noite ela não dormira. Passou a noite toda, sentada na cadeira sem poder
dormir. O mesmo aconteceu na outra noite. E a terceira noite foi igual às duas
primeiras. Foi muito difícil e doloroso se acostumar com seu medo. Mas, vinte
anos de solidão, fizeram com que se acostumasse.
A
porta se abriu. Ele apareceu na soleira, emoldurado pela noite. Parou e a ficou
olhando sem dizer qualquer palavra. Ela o olhava, também, e lhe veio a
impressão de que parecia um pássaro ferido. Ferido e cansado. Não se via a
ferida, mas existia em alguma parte dele.
Perdera
aquele porte altivo. Seus cabelos, outrora negros e abundantes, estavam agora
quase completamente brancos. E o rosto cheio de rugas. Era um homem machucado.
Em
silêncio fechou a porta atrás de si e subiu para o quarto. Ela
encostou a cabeça no espaldar da velha cadeira e cerrou docemente os olhos.
(*)
Publicado no seu livro LINHA D´ÁGUA: CRÔNICAS (Rio: Artenova, 1970).
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