Há 20
anos morreu Arthur Reis, em fevereiro de 1993, no Rio de Janeiro. Intelectual ilustre,
porém fortemente recriminado por ter governado o Amazonas, inaugurando o Governo Militar. Daí
o esquecimento em que foi condenado pelos ressentidos. Jornalista contemporâneo escreveu
o artigo aqui postado, logo após a morte do autor de História do Amazonas e outra centena de livros sobre a Amazônia.
Narciso Lobo (*)
Arthur
Cezar Ferreira Reis tinha o perfil do intelectual arrojado e corajoso, senhor
de suas ideias, estudioso e livresco. Sua biblioteca particular – sua única
fortuna – está entre as maiores do Brasil e tudo o que dizia respeito à Amazônia,
para usar uma paráfrase, também lhe dizia respeito. Há mais de um ano, com a
cumplicidade de Luiz Maximino, defendo a ideia de se trazer para o Amazonas,
mais particularmente para a Universidade, a sua imensa biblioteca, hoje no Rio
de Janeiro. Arthur Reis, em vida, concordou com a ideia. Falta apenas sua
concretização.
Em
nossos tempos de memória curta, de famas meteóricas, oriundas da picaretagem e
da farsa, valores como Arthur Reis desaparecem do mapa de referências,
tornam-se ilustres desconhecidos enquanto o barco da cultura nacional fica à
deriva, entregue aos salamaleques da cultura de massa que modela a seu bel
prazer o pensamento e as atitudes dos incautos.
A
morte de Arthur Reis já está suscitando a pergunta: “Quem era?” E esse momento
é sempre oportuno para se marcar posição. Era ele tão importante para a Amazônia
como Gilberto Freyre para o Nordeste. É possível que, aqui, não se saiba muito
bem quem seja Freyre. Mas será que as novas gerações de lá ainda o conhecem?
Sei lá.
Arthur
Reis não foi apenas a figura pública que dirigiu o Instituto Nacional de Pesquisas
da Amazônia, nos seus tempos heroicos, e a antiga Superintendência do Plano de
Valorização Econômica da Amazônia, hoje Sudam, ou o ousado governador do
Amazonas, “revolucionário” de 1964, que acabou, mesmo, fazendo a revolução
possível, sobretudo no plano da cultura, para desespero dos militares
reacionários que o colocaram no poder.
Foi,
antes de mais nada, o estudioso da Amazônia e seu mais clássico intérprete.
Pela primeira vez um amazônida falava da história e da formação social e política
da região com êxito e charme. Vinha de uma tradição luso-afro-brasileira e contava
sua História do Amazonas pelo viés do
colonizador, enquanto, como pensador e autor de Amazônia e a cobiça internacional filiava-se à mais intransigente
linha de defesa do projeto de nacionalidade brasileira, hoje questionado pelas
crises e pelas ideias apressadas de separatismo. A história ainda contará
melhor a sua hostilidade contra o embaixador norte-americano Lincoln Gordon e a
luta para derrubar o projeto de Herman Khan, que desejava inundar as principais
cidades da Amazônia, visando a criação de grandes lagos para a extração de riquezas
minerais.
No
entusiasmo dos meus vinte anos, já na década de 1970, encontrei, certa vez, com
o mitológico mestre. Eu, a exemplo de outros companheiros de geração, como o
Milton (Hatoun), Aurélio (Michiles), Enéas, buscava o Brasil
Grande dos sonhos mega-útopicos deixados pelo (19)68. E, certo fim de tarde, no Rio, fui assistir a um concerto
de piano, no auditório do MEC, do consagrado compositor amazonense Arnaldo
Rebelo. Ao avistar Arthur Reis, decidi chegar perto e me apresentar ao mestre,
que, de imediato, como sempre fazia ao encontrar um conterrâneo, metralhou as
perguntas de sempre: quem era o pai, o avô, a família, numa tentativa, peculiar
ao seu estilo, de relacionar aquele desconhecido jovem com a história da região.
Da conversa, apoiados numa das janelas
que davam para a avenida Graça Aranha, ficou a resposta que deu ao meu
questionamento sobre a tragédia dos povos indígenas, tema que, naquele momento,
ganhava espaço no meu leque de preocupações. Devo dizer, sem mais, que a minha
solidariedade para com o índio nasceu depois que saí de Manaus e diante das
sucessivas perguntas imbecis e
desinformadas acerca do assunto, Arthur Reis me ouviu e num movimento lento,
como se com as mãos conduzisse uma câmara de cinema, num movimento
semicircular, apontou para os majestosos prédios que nos cercavam, e mencionado
o próprio prédio do MEC, uma referência da arquitetura moderna, falou, sem
disfarçar a falta de jeito, e até com certa ironia:
-- Infelizmente... Mas se não fosse assim
não teríamos tudo isso que você está vendo...
Clóvis
Barbosa, outra personalidade que aos poucos a cidade esqueceu, referindo-se ao
conhecimento de Arthur Reis sobre a região, evocava sempre a imagem do disco na
antiga vitrola: “Ele sabe toda a história do Amazonas, de trás para a frente,
de frente para trás...”. Quase uma centena de obras escritas, docente por
vocação, conferencista e politico como via de consequência.
Quando
o governador do Amazonas, representando uma ditadura que se prolongaria por
mais de vinte anos, Arthur Reis se preocupou de trazer para perto de si os mais
novos e inquietos. Levou o então imberbe Márcio Souza para seu gabinete, trouxe
Elson Farias para sua assessoria e autorizou Luiz Maximino a negociar a
libertação do odiado Glauber Rocha, preso no Rio, para filmar o documentário
institucional “Amazonas, Amazonas”, filme que muito pouca gente assistiu.
Ao
mesmo tempo, criou as Edições Governo do Estado, despejando perto de 150 obras
de ensaio, ficção, poesia, antropologia em nossas cabeças curiosas e perplexas.
Um projeto de tal envergadura que acabou com o fim de seu governo. O que se viu
depois, salvo exceções, foram iniciativas tímidas, muitas vezes com conteúdos de
baixa qualidade refletindo o compadrismo cultural do atraso.
Ao
mesmo tempo, foi duro com os adversários acusados de corrupção. Felizmente não
havia pena de morte e com o tempo foi possível repor o que estava errado. No
entanto, o exemplo de Arthur Reis encoraja-me a propor a hipótese de que um
homem que respeita e ama a cultura de seu povo jamais será um carrasco ou um
carcereiro de seus semelhantes.
Com
Arthur Reis, ainda, vieram os arquitetos Severiano Mário Porto e Cezar
Oiticica, que viraram amazonenses e até hoje apontam saídas para nosso caos
urbano e não perderam a esperança de que é possível construir uma cidade com
cidadania.
Em
síntese, pessoas que mexeram em tantas direções, conciliando a tradição com a
modernidade, questionando o atraso, apostando na Universidade do Amazonas que
ressurgia, pessoas assim permanecem vivas. Ativas, mesmo na Província da
Amnésia, no País do “Me Esqueci”. Para falar a verdade, a trajetória de Arthur
Cezar Ferreira Reis nos diz que nem tudo está perdido e que o Brasil tem jeito
e que amanhã poderá ser bem melhor.
(*)
Narciso Lobo é (era) professor do Departamento de Comunicação Social, pró-reitor
de Assuntos Comunitários da Ufam e membro do Conselho Estadual de Cultura.
Pertenceu a Academia Amazonense de Letras e ao Instituto Geográfico e Histórico
do Amazonas. Morreu em 2009. Reproduzido do jornal A Crítica, fevereiro de 1993
Nenhum comentário:
Postar um comentário