SAPATO DE LONA
Renato Mendonça
De
vez em quando, quando boto a memória para passear, ela tropeça em algum
resquício pitoresco do passado; regurgita assim dessa maneira um episódio
saliente da vida, e sem dúvida aquele que vale a pena resgatar para registrá-lo
no álbum das reminiscências. Então, viajemos até lá.
Renato Mendonça, o alfaiate |
Eu
estava com meus quinze ou dezesseis anos, talvez. O marco temporal me diz que
eu havia recebido de presente de meu irmão, Roberto, uma calça cinza clara,
estilo Saint Tropez, essas que nos tempos idos tinham a cintura baixa,
baixíssima. E, para completar o estilo romântico em evidência, vivia-se os
tempos da Jovem Guarda, de onde se importava mentalmente os figurinos. A
turma de jovens rapazes usavam os cabelos medianamente compridos como seus
ídolos, e as moças conviviam estereotipadas com os sintomas de uma paixão, por
certo contaminadas com o veneno da flecha do Cupido. Assim, era
importante que a roupa estivesse acompanhando a moda.
Mas,
como o dinheiro era escasso, cada um tinha que se virar para conseguir melhorar
o visual sem gastar quase nada. A compra de um corte de tecido era fundamental
e muito usual, para a seguir confiá-lo ao alfaiate ou uma costureira. No meio
daquele pequeno universo de adolescentes de classe média, pobres monetariamente,
eram as próprias mães quem se encarregavam dessa tarefa.
Para
minha sorte, eu tinha um amigo alfaiate, o Osmar. Ele gostava de costurar,
gostava também de criar figurinos, porém alguns deles de gosto duvidoso. E eu,
aproveitando-me da chance de ser um aprendiz do seu ateliê e me escalando como
um bom observador, também dava meus pitacos nos modelos criados. E essa fase
foi profícua para um envolvimento maior com a turma de rapazes, pois me
procuravam para opinar sobre o padrão do corte de tecido, as dimensões e os
estilos de camisa; serviu também para estreitar meu relacionamento social com
as garotas, muito embora raramente fazíamos costuras femininas.Camisas atualizadas
Nas
camisas, as golas altas, imensamente altas, como as que usavam Elvis Presley,
eram as mais desejadas. Em algumas, usávamos até um recheio de espuma para
tentar mantê-las em pé, como se fosse um colete para o pescoço com torcicolo;
as calças, e suas exageradas boca-de-sino, pareciam mais próprias para
varrerem as ruas empoeiradas do nosso bairro.
E
assim, o tempo ia acariciando nossos sonhos de jovens, apalpando uma bola de
cristal do futuro, onde não se via nada ainda. Nela, constavam apenas as missas
de domingo, os bailinhos, as peladas no tosco campinho de futebol e, também,
como não podia deixar de acontecer, as poucas paqueras, subsidiadas pelo calor
em brasa da juventude.
Pensando
numa melhor apresentação, principalmente para causar impressão durante o
horário da missa, desejei usar um sapato novo para completar o meu visual.
Porém, a falta de dinheiro conspirava para que esse sonho não se realizasse tão
cedo. Muito embora, o meu velho Vulcabrás, sentindo-se pejorado pelo meu
pé que crescera, já pedisse aposentadoria, e em breve seria convertido num
chinelo improvisado. De repente, me deu um estalo: lembrei que meu irmão,
Henrique, tinha comprado um sapato de lona cor azul mescla e ainda não tinha usado.
Talvez estivesse esperando a tal ocasião especial. E eu, fortuitamente, quis
dar a ele — o sapato de lona — a aguardada ocasião.
Sapato de lona (moderno) |
Enquanto ele estava envolvido no seu
trabalho, eu calcei o belo sapato de lona. Macio, achei que se encaixou
perfeitamente no meu pé, como se fosse uma meia de cetim, nem percebi que era
um número menor. A extensível lona ofereceu-me sua contribuição para que eu não
me frustrasse. Com a minha calça Saint Tropez e uma camisa recém
costurada, saí por aí sentindo-me um verdadeiro Don Juan. Porém, tive o
cuidado de não o sujar nem frequentar terrenos hostis à delicadeza do sapato,
pois deveria ser devolvido para a caixa, limpo, para que aparentasse que não
fora usado. Assim o fiz.
Alguns
dias depois, quando meu irmão foi fazer a “tal estreia”, percebeu que o sapato
estava folgado no seu pé. Desconfiou que eu já o havia usado. Mesmo sabendo da
bronca que receberia, não pude negar.
Nem
é preciso relatar que ele “cuspiu maribondos”, esbravejou bastante, mas, no fim
de todo esse episódio, o que ficou de lição para mim, foi algo impensado
naquela época, no ápice da minha juventude. Apesar de toda a sisudez e aparente
falta de carinho, exercitou o perdão e demonstrou que me amava muito, e me deu
o sapato de presente. E aí, sem culpa nem traumas, passeei tantas e tantas
vezes com minha calça preferida e meu sapato de lona azul mescla, até ele não
caber mais. *
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