CATANDO PAPÉIS & CONTANDO HISTÓRIAS

sábado, julho 24, 2021

NOSSO QUINTAL

 Não cabe explicação, o texto é autoexplicativo. Meu irmão Renato produziu o texto ano passado, falando desse paraíso que ele, mais que eu, desfrutou na infância. Em nossos dias, não há mais quintal para deleite da infância.

Renato, Roberto e Antonio presentes no Quintal do Morro

O Quintal

06.10.2020

 

Renato Mendonça

          Dentre todos os quintais que conheci na minha infância, o da rua Amazonas, no Morro da Liberdade, um incipiente bairro da bucólica Manaus, foi o mais relevante, envolvente e talvez o mais persistente nas memórias. Teve ares de um tutorial a engendrar, acatar e incentivar todas as traquinagens infantis. Posso dizer que acompanhou, não só a nossa infância, senão um considerável quinhão da nossa história.

         Esse quintal era como se fosse um personagem em nossa biografia, tinha vida, e vida afetiva. Costumava armazenar consigo, com carinho, as “armas” que fabricávamos para nossas brincadeiras. Não havia espaço dentro de casa para tantas bugigangas; como contrapartida, havia a necessidade dos adultos para abduzirem todas as engenhosidades que inventávamos e gostaríamos de tê-las até o anoitecer.

Devido nossa carência monetária, usávamos a criatividade para não ficar privado de alguns brinquedos sazonais. As ferramentas do pai era o incentivo necessário para o trabalho artesanal. Rolimãs do carrinho foram substituídas por rodas de madeira, mas, de vez em quando uma se espatifava e encaminhava o piloto ao inevitável tombo; o volante, substituído por um guidão, também de madeira, era guiado por cordas e puxado por um dos irmãos. Outras vezes, empurrado pelas costas do piloto, e, sempre que tinha espaço, com a velocidade máxima.

Tento em vão descrever todos os brinquedos fabricados ali, como se fosse uma oficina da vida provinciana, como um molde para o caráter e a circunstância da vida; tento resgatar na íntegra o pomar abrigado naquele vasto terreno de quase mil metros quadrados. Enumero alguns. Recordo os piões toscos de madeira, que demoravam uma eternidade para ficarem prontos. Para mantê-los simétricos valia tudo: o formão do pai para cortar, uma grosa para desbastar, uma faca de cozinha para o acabamento e até a calçada de cimento, usada como lixa, para bolear a ponta do prego. No final, cada um brincava como podia, e como sabia. Não havia disputa, só o prazer de vê-lo girar. E quem ainda não tinha o seu, podia fazer uma “carrapeta”, usando a metade de um carretel (vazio) de linha, que naquela época eram todos feitos de madeira. Depois, bastava usar as pontas dos dedos...

Centenas de bolinhas de gude ficavam armazenas nas latas vazias de alimentos. As mais bonitas eram preservadas e nem eram colocadas em jogo para não se desgastar. Serviam tão somente para serem admiradas, muitas delas pareciam ter no seu interior uma carambola colorida. Lindas!

Mudava a estação, e com isso mudava os brinquedos. Era tempo de pipa. Era tempo de recolher talas de palmeira para o fabrico dos papagaios, era tempo de recolher alguns vidros mais frágeis para fazer o cerol. Era o tempo de conseguir algum trocadinho para comprar a barra de cola e o papel-seda, porém, se não conseguisse, usava-se o velho jornal mesmo. A pipa ficava pesada, mas conseguia subir com o vento forte que inundava o terreno ou o campinho atrás de casa. Se o vento não vinha logo, valia uma apelação mística: “vem vento, que eu te dou mil e quinhento...”. Era uma simpatia antiga, transferida de outras gerações.

Mas havia aqueles brinquedos perenes, que não seguiam a sazonalidade. As pernas de pau, por exemplo. Era um artefato de madeira que não tinha regra, a mais alta era a mais bonita e a mais desejada. Era, além de tudo, um condicionamento muscular para enfrentar todas as tarefas diárias, não só as brincadeiras como os trabalhos domésticos.

Para todo esse arrojo, para toda essa disposição, tínhamos ao nosso lado o aconchego das árvores para completar a nutrição. Lá estavam os cajueiros, as goiabeiras, o pé de biribá, e mais ao fundo, um de jenipapo e uma grande jaqueira, que infelizmente não deu frutos. Esperamos anos a fio por uma simples jaca, e nada! Nem manteiga nem pau. Era jaqueira-macho, ensinavam os mais velhos. Não adiantou simpatia, orações nem alguns cortes sulcados no tronco para mudança de sexo. Aproveitávamos a sombra para esticar uma rede ou pendurar um frágil balanço, que nos levava ao delírio quando roía a corda. Também tinha a função de tapar o sol quando se estava assando as castanhas-de-caju. Essas aliadas da saúde eram tão numerosas, que era necessário duas ou três fornadas no fogo de lenha.  (segue)

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