O texto pertence ao Tiago, filho do poeta Thiago de Mello, amazonense que brilhou nos círculos literários do país, falecido nesta semana, aos 95 anos. A publicação circula nas redes sociais e chegou ao meu conhecimento através do poeta Zemaria Pinto.
A ilustração saiu da inspiração do artista plástico Marius Bell.
Mensagem do Thiago, filho do poeta Thiago de Mello
Passei três semanas no Amazonas, viajando sozinho. Se é que é possível dizer que viajei sozinho, pois sempre estive acompanhado de gente que me quer bem, amigos e familiares que encontrei pelo caminho. Gente que amo e que me constitui. Fui com dois propósitos nessa imersão solitária. O primeiro, visitar meu pai. Estar com ele por alguns momentos, já ciente da situação de saúde e cuidados na qual ele se encontrava. Depois, fui com o objetivo de iniciar uma reforma inadiável em nossa casa à beira do rio, em Freguesia do Andirá, no interior do município de Barreirinha, a quase 350 km de Manaus. Um dia de barco pra chegar até lá.
A casa me pede zelo já há um tempo e estou há uns meses
organizando uma campanha para arrecadar recursos para as obras. Consegui uma
parte do dinheiro através da generosidade e da compreensão de muitos amigos e
conhecidos, todos amantes da amizade, da poesia, da Amazônia e da obra
literária de meu pai. Todos sonhadores como eu, que sabem, como meu pai, que
arte e cultura geram evolução individual e progresso social.
Embarquei no final de dezembro para Manaus, sendo acolhido
pela minha família amazonense que tanto quero bem. Fui ao apartamento de meu
pai e Pollyanna. Ele já estava praticamente sem se levantar. Fui até o quarto.
Quando ouviu minha voz, comentou: "voz bonita a do meu filho". Com a
memória dissolvida pelo tempo (do qual não se corre) e pelas neuropatias,
perguntou meu nome e se eu tinha filhos. Disse que me chamava Thiago e que
tinha duas filhas. Nossas mãos entrelaçadas num carinho suave e ancestral.
"Mas então nós temos o mesmo nome", ele notou. Falei que isso tinha
sido invenção dele, pôr meu nome Thiago Thiago de Mello. No que ele, após um
certo silêncio, falou baixinho: foi pra ficarmos juntos até mesmo no nome.
"Cuida bem das suas filhas". (Eu me emocionei muito nessa hora porque
queria dizer a ele que se sou um bom pai é porque ele foi o melhor formador e
educador que eu pude ter).
Seguimos nossa conversa cheia de silêncios e respirações. Quis
saber o que eu fazia da vida. "Canções e poemas", não titubeei. Ele
fez que sim com a cabeça e repetiu "canções e poemas, isso".
Perguntei se eu estava indo no caminho certo. "Certíssimo", ele me
disse com a voz grave de trovão adormecido. Comentei que estava indo para
Barreirinha cuidar da nossa casa, pedi a sua benção ("Deus lhe
abençoe", me beijando a mão) e segui o meu caminho rumo ao rio Andirá, dos
Saterês-maués.
Fiquei semanas num país submerso, me nutrindo do passado, de
banho de cheiro, tucumãs, ovas de curimatã, sombra de castanheira, amizades
verdadeiras e caldeiradas de tucunaré e tambaqui. As obras começaram. Retiramos
as vigas podres. Os esteios corroídos substituímos por madeira nova. Passamos
óleo queimado para afugentar o cupim de terra traiçoeiro. Compramos tinta,
cimento, ferro. Vieram os trabalhadores. As telhas chegaram de Parintins,
presente de Antonio Beti, cuja doação jamais esquecerei. Recebi tanto em minha
jornada pelas águas. Fiz um trabalho firme, aguentando o rojão sob chuva e sol
quente.
Barreirinha, onde meu umbigo está enterrado, me acolheu como
sempre. Vi a felicidade nos olhos de gente simples, hospitaleira, contadora de
histórias. É com meus irmãos e irmãs ribeirinhos que meu espírito se molda e
evolui. Na verdade, estava sem saber, me preparando para um adeus após uma
longa despedida. Fortaleci minha alma estando naquele lugar, berço meu, que
aprendi a amar com meu pai e minha mãe desde que pra lá fui levado aos 6 meses
de idade.
Voltei pra Manaus e fui ao apartamento ver meu pai. Ele não me
respondeu, já completamente dentro do seu próprio mundo, distante daqui. Pedi
um violão e, então, comecei a tocar. As lágrimas caíram, eu sentado e ele
deitado na cama. Tirei do baú as canções que sempre cantávamos juntos: "Azulão",
"Por que tu te escondes", "Linda vida", "Pai
velho", "Quem me levará sou eu", "Faz escuro, mas eu
canto". Fiquei ali cantando por mais de trinta minutos, a primeira vez em
nossas vidas que ele não cantou junto comigo. Foi um concerto de despedida. A
nossa despedida tinha que ser com música e poesia, universo no qual sempre nos
encontrávamos.
Saí dali e fui comer um pacu assado de brasa em sua homenagem. Botei bastante pimenta murupi e tomei um suco de taperebá pra aliviar o peito. No dia seguinte, logo cedo pela manhã, papai atravessou o rio da vida. Morreu dormindo, bravo merecedor. Parece que estava só me esperando para seguir à Casa do Infinito. Sincronicidade astral, projeto dos deuses, dádiva da natureza. Ele foi em paz. Estamos de luto, mas em breve cantaremos com alegria, como ele sempre nos ensinou.
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