CATANDO PAPÉIS & CONTANDO HISTÓRIAS

sábado, setembro 04, 2021

O MERCADO PÚBLICO

 Passei a semana enredado com uma notícia sobre o saudoso Ramayana de Chevalier. Surpreso, voltei às pesquisas. Em contato com o Nonato Braga fui presenteado com uma coletânea de publicações de Chevalier. Não hesitei em compartilhar, esta postagem (em duas partes) foi escrita para a revista A Selva, em 1938.

Lembro que ele nasceu em Manaus em 1909, e conquistou a graduação em Medicina na Bahia aos vinte e dois anos, em 1931. Depois de circular pela Capital Federal, regressou a Manaus em 1936, quando foi nomeado pelo interventor Álvaro Maia, no posto de capitão, diretor do Serviço de Saúde da Polícia Militar do Estado.

Estando em Manaus, escreveu para as revistas em circulação, desse modo, quando colaborou com a Selva estava com 29 anos.

Este texto permite para quem conheceu o Mercado Público, o Mercadão, um ótimo retrospecto. Aos novinhos, uma tentativa de compreender o que era o costume de, sem supermercados, “fazer as compras”.  

Título do artigo, com indicação da revista

Pela madrugada, quando os últimos vestidos (sic) do sereno caíram, queimados pela aurora, surge a cidade, nua de sombras, esbatida em luzes e em símbolos estéticos. Começam os pregões, as algazarras, os ruídos, simples e monótonos, de refúgio provinciano.

O Mercado movimenta-se. colorido, amplo. Moderno, com os seus botequins, as suas tascas, as suas tendas, pequeninas babeis, onde os idiomas se cruzam e se entendem, no vértice das mímicas, transfundidos num vernáculo primitivo e aleijado, alombado de tropos e de solecismos.

Desde a noite anterior começaram a chegar as embarcações. Canoas rasas de frutos: abacaxis, melões, melancias, abacates, bananas, carambolas, sorvas. pitangas, sapotis: frutos de todos os gostos e feitios, ácidos. acidulados. agridoces, dulcíssimos, polpudos, secos, aromais.

Batelões abeiram também, pesados. Entoldados, arfando, no focinhar de proa, à carga das quinquilharias, das garrafadas, dos utensis, brilhantes e baratos, mais cheios de sentimentos que de coisas: são os regatões. Ali mesmo armazenam, comprando. o de que vivem a mercadejar e ali mesmo, vendem, barganhando, o de que vivem por vender.

Sírios do Líbano, turcos dos Estreitos, árabes de Áden, carcamanos, calabreses, galegos e algarvios, judeus de todos os recantos, promiscuem-se, desafiam-se, competem, na surdina das lábias, na lógica dos linguajares, no combate das ofertas, sujeitos a leis próprias, naturais, humanas, que dão folga à polícia e tranquilidade aos consumidores.

Que seja sempre de paz o clima da "praia", isso não. Aqui e ali: uma rasga, acolá e além: um bate-boca, uma ameaça que se perde no ar sem reação, um arrepio cangaceiro, que agoniza sem eco nem efeitos. São nordestinos, cobreados de sol, que se rebelam, aos quandos, contra a madraceira dos caboclos, a sinuosa concorrência do ádvena safado.

Tudo fica no impropério rude, amaciado pela voz cantante dos ex-violeiros, atuais comandantes de piroga.

O nome das canoas acompanha o ritmo sentimental dos homens. São evocações das planuras do Nordeste, ou balismos de animais amazônicos, ou reminiscências das pátrias distantes, dos amores mortos, das cenas desaguadas no passado.

"Rosa do Líbano", "Piancó". "Garça", "Saudade". "Deus te guarde", "Balbina", "Mergulhão"...

Nomes que são histórias. rótulos que são lendas amáveis, títulos, sóbrios e meigos, que apresentam vidas inteiras de dor e de renúncia...(segue)

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