CATANDO PAPÉIS & CONTANDO HISTÓRIAS

domingo, setembro 05, 2021

O MERCADO PÚBLICO (2)

 Complemento da postagem de ontem, que publicou texto de Ramayana de Chevalier.

Título da publicação na revista A Selva, 1938

Veem elas de longe, léguas e léguas d’água, ao arrojo dos músculos. ao léu dos descantos matutos, ao sabor da paisagem escancarada como um grito, vencendo a corrente.

E como que se identificam as origens, pela máscara, pela indumenta dos remeiros.

Brunos uns, sararás outros, rudes todos, diferem, pelas ademanes e pela conversa, pelo traje e pelo aspecto. Chegam os de Terra-Nova, folgados, prazenteiros, ainda capazes de novas milhas na luta contra a caudal: trazem parcos que guincham, papagaios faladores. galinhas fartas, ovos sem pinto. Aproximam-se os do Careiro: mais fatigados. ainda assim oferecem, alegremente, as suas angélicas, os seus pescados, ainda palpitantes, de guelra viva, resfolegando...

Avançam os do Xiborena, os do Manaquiri, os de Puraquequara, os do Cambixe, os da costa do Rebojão. Refertos de esperança e de resignação, uns tristes por destino, outros loquazes e comunicativos despejam todos a sua carga: frutos, bichos, artifícios de cipós, estatuarias argilosas, fantasias de penas, quinquilharias feitas de sementes perfumadas, pechisbeques de chifre ou de carapaças de quelônios, minúcias pulverizadas para odorizar roupas íntimas. E tudo se reúne em montes, em ilhotas, no aladeiramento praieiro, ofertado nos gritos. aos dichotes, às gargalhadas, entre anedotas de valentia e recontos de chiste.

De quando em vez uma depreciação gaiata da mercadoria de um colega: "Ei, Nhô Chico! Esse tucunaré já nasceu morto!" E o riso coroa a graçola, sem ressentimentos, sem rancores, sem perfídias. Tudo espontâneo e simples como aquelas almas, nascidas na selva, entre amigos bolanicos (sic) e inimigos civilizados.

O sol já vai alto. Rutilam, ao seu beijo, os vergalhões de ferro dos armazéns, a cabeçorra achatada dos galpões da Manaus Harbour.

As famílias passeiam entre os montes de produtos. Param aqui, além, no indagar pelo custo do cento de laranjas do Purupuru, pelo custo das mangas amarelas, dos cajus vermelhos e cheirosos.

E uma festa. Diária, permanente. humilde e majestosa na harmonia das almas e das coisas, uma festa amazônica, pacata e sedutora, onde não falta, por nenhum motivo, a sagrada cachaça.

Do Janauacá vem ela aos garrafões, barata, pura, transparente, para cobrir da humidade das noites o corpo dos que dormem ao leu, e do calor do dia a pele dos que não têm sombras, nem palácios...

Serve para tudo e acompanha, por toda a parte, os remadores audazes da minha terra. Ela é como o beijo de certas mulheres: eterniza um instante de satisfação e reduz a um instante a longitude de uma vida...

É a amiga melhor e a melhor inimiga. Depois que se queimam nela, perdem os caboclos a resistência ao mosquitoQualquer paludismo é uma condenação. qualquer inflamação do fígado: a morte. O que seria, no entanto, sem ela, os pobres caboclos, desamparados e tristes por nascimento? Com ela o Mercado vive e se inflama de surpresas, na algaravia dos narradores de histórias de bate, de boiuna, de assombrações.

À tarde, morre a "praia". O sol esquenta e cai, em flexus verticais, sobre o cansaço dos atletas morenos.

Eles então, antes de partirem, para retornar, de novo, às carícias da lua ou às carrancas do céu tempestuoso, procuram o repouso, gozando as últimas horas da cidade. Ou dormem, descuidosos, ao mormaço, no fundo das embarcações quietas, ou farejam, solertes e dissimulados, as ruas suspeitas, à cata de um corpo vago e de uma cama tosca.

E levam, não raro, sob o paletó de mescla. ou a blusa de madapolão, ou em embrulhos opressados, o seu melhor quinhão, tambaqui gordinho ou bananas doiradas, para a oferenda régia às suas morenas.

Sem o Mercado, Manaus seria uma imitação grotesca de cidade grande. Com o Mercado, ela é um berço de ineditísmos e uma reserva gloriosa de brasilidade amazônica.Veem elas de longe, léguas e léguas d’água, ao arrojo dos músculos. ao léu dos descantos matutos, ao sabor da paisagem escancarada como um grito, vencendo a corrente.

E como que se identificam as origens, pela máscara, pela indumenta dos remeiros.

Brunos uns, sararás outros, rudes todos, diferem, pelas ademanes e pela conversa, pelo traje e pelo aspecto. Chegam os de Terra-Nova, folgados, prazenteiros, ainda capazes de novas milhas na luta contra a caudal: trazem parcos que guincham, papagaios faladores. galinhas fartas, ovos sem pinto. Aproximam-se os do Careiro: mais fatigados. ainda assim oferecem, alegremente, as suas angélicas, os seus pescados, ainda palpitantes, de guelra viva, resfolegando...

Avançam os do Xiborena, os do Manaquiri, os de Puraquequara, os do Cambixe, os da costa do Rebojão. Refertos de esperança e de resignação, uns tristes por destino, outros loquazes e comunicativos despejam todos a sua carga: frutos, bichos, artifícios de cipós, estatuarias argilosas, fantasias de penas, quinquilharias feitas de sementes perfumadas, pechisbeques de chifre ou de carapaças de quelônios, minúcias pulverizadas para odorizar roupas íntimas. E tudo se reúne em montes, em ilhotas, no aladeiramento praieiro, ofertado nos gritos. aos dichotes, às gargalhadas, entre anedotas de valentia e recontos de chiste.

De quando em vez uma depreciação gaiata da mercadoria de um colega: "Ei, Nhô Chico! Esse tucunaré já nasceu morto!" E o riso coroa a graçola, sem ressentimentos, sem rancores, sem perfídias. Tudo espontâneo e simples como aquelas almas, nascidas na selva, entre amigos bolanicos (sic) e inimigos civilizados.

O sol já vai alto. Rutilam, ao seu beijo, os vergalhões de ferro dos armazéns, a cabeçorra achatada dos galpões da Manaus Harbour.

As famílias passeiam entre os montes de produtos. Param aqui, além, no indagar pelo custo do cento de laranjas do Purupuru, pelo custo das mangas amarelas, dos cajus vermelhos e cheirosos.

E uma festa. Diária, permanente. humilde e majestosa na harmonia das almas e das coisas, uma festa amazônica, pacata e sedutora, onde não falta, por nenhum motivo, a sagrada cachaça.

Do Janauacá vem ela aos garrafões, barata, pura, transparente, para cobrir da humidade das noites o corpo dos que dormem ao leu, e do calor do dia a pele dos que não têm sombras, nem palácios...

Serve para tudo e acompanha, por toda a parte, os remadores audazes da minha terra.

Ela é como o beijo de certas mulheres: eterniza um instante de satisfação e reduz a um instante a longitude de uma vida...

É a amiga melhor e a melhor inimiga. Depois que se queimam nela, perdem os caboclos a resistência ao mosquito.

Qualquer paludismo é uma condenação. qualquer inflamação do fígado: a morte. O que seria, no entanto, sem ela, os pobres caboclos, desamparados e tristes por nascimento? Com ela o Mercado vive e se inflama de surpresas, na algaravia dos narradores de histórias de bate, de boiuna, de assombrações.

À tarde, morre a "praia". O sol esquenta e cai, em flexus verticais, sobre o cansaço dos atletas morenos.

Eles então, antes de partirem, para retornar, de novo, às carícias da lua ou às carrancas do céu tempestuoso, procuram o repouso, gozando as últimas horas da cidade. Ou dormem, descuidosos, ao mormaço, no fundo das embarcações quietas, ou farejam, solertes e dissimulados, as ruas suspeitas, à cata de um corpo vago e de uma cama tosca.

E levam, não raro, sob o paletó de mescla. ou a blusa de madapolão, ou em embrulhos opressados, o seu melhor quinhão, tambaqui gordinho ou bananas doiradas, para a oferenda régia às suas morenas.

Sem o Mercado, Manaus seria uma imitação grotesca de cidade grande. Com o Mercado, ela é um berço de ineditísmos e uma reserva gloriosa de brasilidade amazônica.

2 comentários:

  1. Vi seu comentário sobre Operação Tentação, nessa época estava embarcado no Barroso Pereira e fizemos duas viagens ao porto de Degrad des Cannes...foi duas viagens muito interessante. Sei que, os Brasileiros foram atraídos para construção da Base de Kourou e em 1974, ia concluindo as construções e os brasileiros já tinham constituído famílias e perderam seus empregos. Gerando assim conflitos sociais.

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  2. Vi seu comentário sobre Operação REBRACA, nessa época estava embarcado no Barroso Pereira e fizemos duas viagens ao porto de Degrad des Cannes...foi duas viagens muito interessante. Sei que, os Brasileiros foram atraídos para construção da Base de Kourou e em 1974, ia concluindo as construções e os brasileiros já tinham constituído famílias e perderam seus empregos. Gerando assim conflitos sociais.

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