Recorte da capa do livro de Gonçalves Maia |
Gonçalves Maia foi um amazonense que, depois de
anos fora de Manaus, decidiu rever seu torrão natal. A viagem aconteceu em 1905.
Da expedição e dos fatos apreciados e anotados resultou o Livro de Viagem Norte, editado em Lisboa no ano seguinte.
No capítulo transcrito, Maia faz uma elogiosa apreciação
da Polícia local. Lembra os comandantes da tropa amazonense em Canudos, em
especial de Rafael Machado, que julgo ter sido seu contemporâneo.
Recorda ter sido hóspede do Hotel Casina (ou Cassina?), sobre o qual escreveu outro tópico.
Fica o questionamento: o nome deve ser grafado com um ou dois “esses”?
Recorte da folha de rosto do livro de Gonçalves Maia |
UM
CASO
Há indivíduos que passeiam uma vez só por uma cidade e fixam na cabeça
facilmente todas as ruas, por mais complicadas e tortuosas. Não se perdem
nunca.
É uma faculdade apreciável que eu infelizmente não possuo. Tenho-me
perdido no Rio de Janeiro, na Bahia e até no Recife, nos seus becos tortuosos
de velha cidade, lá pelo largo da Assembleia antiga, beco dos Burgos e não sei
que mais.
E como um capricho muito infantil me faz não perguntar nunca o caminho,
reduzo-me ao papel de judeu errante, horas inteiras.
No dia imediato da chegada a Manaus, morando no centro da cidade, no Largo
do Palácio (agora, Praça Dom Pedro II),
estando talvez a dois passos do hotel, perdi a direção. Não perguntei a ninguém
à rua. Numa pequena cidade, se há de dar numa rua que já é conhecida.
Há uma hora que ando ruas enormes, compridas, largas, iluminadas por
grandes lâmpadas de arco voltaico de mil velas; mas sinto que cada vez me
afasto mais de casa.
São nove horas da noite.
Ponho de lado o capricho e dirijo-me a um polícia que está firme e de pé
no meio da rua. Era um homem alto, bem parecido, com os botões da farda
cintilantes como ouro limpo.
- Camarada, disse-lhe, sou de fora e parece que errei o caminho de
casa. Poderia indicar-me?
- Para onde o senhor quer ir?
Indiquei o hotel.
- Faça o favor: disse-me. E eu o segui.
Estava na rua Quintino Bocaiuva, em frente a aterro. Na primeira
esquina, no meio da rua, como um marco, estava outro polícia. Entregou-me a
ele, dizendo que me indicasse o caminho.
Este outro me levou a um terceiro, este a um quarto, este a um quinto; não
contei o número; sei que de mão em mão, delicadamente, silenciosamente,
confiante, eu cheguei ao Hotel Casina.
- É ali, disse ele, apontando o hotel.
Educado em outras cidades, quis gratificá-lo.
-- Não, senhor; respondeu secamente. Guardei o dinheiro, quase
envergonhado.
Teria sido assim no Rio, na Bahia, em Pernambuco, na Paraíba, no Maranhão,
em qualquer dos outros estados? Não sei.
A Polícia do Amazonas, eu sabia o que ela fora na guerra, quando, sob o
comando de Cândido Mariano e Rafael Machado (civil
que se engajou na tropa amazonense), velho camarada que vim encontrar hoje
feito deputado estadual, entrou, a primeira de todas forças no arraial de
Canudos; agora vejo-a na paz.
E compreendo como, debaixo daquela correção, daquele perfilhamento,
daquele brilho de botões, da limpeza daquele fardamento sem uma mancha, corra o
sangue de uma disciplina que é a alma das organizações militares. A cidade é
dividida em quadras, como em Montevidéu. Só há largas ruas e avenidas que se
cruzam. Em cada quadra há um soldado daqueles, em pé, no meio do caminho ou
andando vagarosamente, em passo marcial. Sempre pelo meio da rua.
Hei de vê-lo um dia nos quartéis.
Mas assim, compreende-se bem que eu chame Manaus uma cidade policiada e
por uma Polícia como eu nunca tinha visto no Brasil.
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