No momento em que a autoridade municipal expressou o anseio de implantar uma linha de trólebus no centro, para turismo, vou relembrar um pouco da longa história dos desaparecidos Bondes. O texto foi escrito em A Crítica (ed. 19 ago. 1952) por Carlos Alberto de Almeida Barroso (integrante da Academia Amazonense de Letras), que desfrutou dos últimos tempos deste meio de transporte, pois, criado no final do século 19, foi extinto em 1957, pelo governador Plínio Coelho que ainda intentou recondicionar a frota sucateada.
Bonde em Manaus |
Cabeçalho do artigo |
Até onde posso recuar no tempo com o auxílio da memória, distingo em Manaus uma série de linhas de bondes, com diversos nomes: “Cachoeirinha”, “Circular Sete de Setembro”, “Flores”, “Bilhares”, “Vila Municipal”, depois “Adrianópolis”, “Fábrica de Cerveja”, “Remédios”, “Saudade Avenida”, “Saudade Instalação”. Em dias de festa ou nos domingos, havia bondes com outros nomes. Era então o bonde o veículo por excelência da cidade, a condução que todos preferiam, não só por ser mais barata, como por oferecer as melhores condições de segurança e mesmo de conforto para o nosso clima.
Lembro-me
que o primeiro bonde que me impressionou na meninice, foi o “Fábrica de Cerveja”.
E por que? Simplesmente porque foi nele que fiz a minha estreia, “morcegando”,
como se dizia. Foi no Plano Inclinado, hoje rua Comendador Alexandre Amorim,
próximo à Vila Rezende. Tinha chegado de Manacapuru e aqui me encontrava a
menos de uma semana com cara e jeito de bisonho habitante dos barrancos
ribeirinhos do Solimões, meio estonteado com o movimento da cidade. Fora à
taberna do canto [esquina] fazer compras e, de volta, um companheiro da minha
idade, mas muito mais experiente, convidou-me a pegar o bonde que se encontrava
parado, enquanto tomava passageiros.
-- É só pegar e saltar, parado mesmo, -- disse-me ele num convite incisivo. Mal, porém, eu me ajeitara à plataforma do veículo, ele dera de marcha. Enquanto o bonde tomava velocidade, o meu companheiro, junto a mim advertia-me: -- Vamos logo saltar, que não há outro jeito!
E depois
de falar, de fato, saltou, com perfeito controle do choque recebido ao pisar no
chão. Comigo, porém, a coisa foi muito diferente, pois que, neófito ainda nesse
negócio de pegar bonde e saltar dele em movimento, ao descer sofri várias
escoriações pelo corpo, culminando a brincadeira, depois que em casa ao tomarem
conhecimento do ocorrido, com uma surra em condições. (...)
Um outro
fato que ainda me está vivo na lembrança, dessa época pitoresca de “morcegação”
de bondes, foi a voz de prisão que recebi de um guarda civil, o qual me
surpreendera naquele ameno passatempo e, sem me dar oportunidade para a fuga,
pegara-me pelo braço e conduzira-me, não obstante a minha choradeira, por mais
de um quarteirão; só me soltando para atender ao pedido do um desses protetores
dos moleques injustiçados que sempre surgem em tais ocasiões. E tudo isso
somente por causa dos bondes, tão irresistivelmente sedutores, tão gostosos,
para se dar uma “pegada”! (...)
O bonde retratava bem a alma de cidade, na sua fisionomia serena ou despreocupada, e nas suas alegrias ou angustias. Quando a cidade estava triste, os bondes apareciam vazios, quase sem passageiros. Bondes cheios, entretanto, era sinal de alegria, de satisfação. Todos se afeiçoavam a um ou dois bondes, que eram os seus prediletos. Encontravam-se neles até certos atributos comuns às pessoas.
Havia os
bondes sérios, que se impunham aos passageiros pelo seu porte, pelo seu aprumo
e que inspiravam mais segurança que os outros. Os da linha do Circular estavam
neste caso. “Fábrica”, “Vila Municipal” e “Cachoeirinha”, foram sempre bondes
pouco simpáticos. Nos bons tempos, quando se falava no “Flores” provocava-se um
calafrio nas senhoras pudicas e nas virgens românticas. Era o bonde proibido,
interditado às pessoas decentes. Sim, “Flores” era um bonde suspeito e por isso
evitado. “Nazaré” foi sempre a linha simpática, cujo percurso dava uma agradável
sensação de volta bem aproveitada. As famílias gostavam de passear nessa linha,
cujo bonde inspirava ao mesmo tempo simpatia e respeito.
Os mais pitorescos eram, no entanto, o “Remédios”, e os dois “Saudade”. Eram os bondes dos namorados. Neles sempre tinham início os “flirts” [flertes], as inofensivas conquistas amorosas. Nas tardes de domingos e feriados disputavam-se essas conduções com muito interesse e entusiasmo. Mesmo nos dias comuns esses bondes sugeriam sempre uma nota risonha da cidade. Pareciam os bondes adolescentes, e assim recordavam sempre a mocidade, a alegria, a vida. Quantos amores não tiveram o seu início nesses bondes ou deles se serviram para alimento da sua chama!
Houve uma
época em que apareceu um “Remédios” por baixo. A verve da cidade encontrou-lhe logo
um designativo: “chá de bico”. Mas o “chá de bico” surgiu já numa fase em que o
bonde começava a sentir a ameaça que transformaria o seu destino. A ameaça das
dificuldades que mais tarde chegariam ao ponto de justificar o crime inominável
de se pensar em extingui-los. Mesmo assim, “chá de bico” viveu ainda bons
momentos e embalou muitas ilusões...
Quando vinha a noite e o fim do dia se aproximava, ainda encontrávamos o bonde em plena forma, movimentando a vida noturna da cidade. A partir das sete, rara era a casa em cuja janela ou porta não palpitava um coração a espera de um bonde. Quando se transformava num mensageiro de paz e de esperança. De fato, quando o bonde se aproximava, o vibrar da campainha e após o aparecimento da querida e desejada presença justificavam bem as palpitações daquele coração. (...)
Hoje,
desapareceu o bonde para a cidade noturna. Em compensação e talvez como
vingança, foi-se a vida noturna da cidade. Mas a fúria homicida -- diria bondicida
-- é irrefreável. Daí a intenção de alguns homens públicos, talvez insensatos,
de acabar de uma vez por todas com os bondes. Não temem esses insensatos, que
se isso acontecer os bondes se vinguem mais uma vez contra Manaus, que sempre
foi tão deles quanto nossa? Seria bom pensarem nisso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário