Há 25 anos, deparei-me com o texto Roteiros da Amazônia, ao pesquisar na Fundação Joaquim Nabuco, em Recife. O folheto não identificava o autor, apenas local e data. Somente dias desses fui apresentado ao artífice: Samuel Isaac Benchimol, saudoso professor emérito da Faculdade de Direito do Amazonas (FDA), onde obteve o bacharelado na turma de 1945. Em consulta à bibliografia de Benchimol pude sanear a questão: constitui em sua primeira obra, desse modo patenteada no rodapé do folheto:
Conferência pronunciada a 21-11-1941 na Faculdade de Direito
do Recife, na recepção feita pelo Diretório Acadêmico a uma entusiástica embaixada
de estudantes amazonenses.
Então, se o
eminente Mestre concluiu o curso de Direito em 1945, quatro anos antes, Benchimol
era apenas um estudante; e a comitiva me parece ter sido de alunos da FDA. Selecionei
trechos da conferência, e ainda assim vou postar em duas etapas,
transcrevendo-a na ortografia vigente.
I - HILEIA
Imersa na selva, bárbara e ateia, banhada nas águas lustrais do Genesis milenário, ergue-se a Amazônia. Amazônia que se vive todos os dias na tortura melancólica de sua paisagem, nos tapiris perdidos dos barrancos, na pescaria alegre e festiva de seus lagos, titanizados nas aventuras heroicas de suas gestas selvagens, nas epopeias pagãs de sua gente humilde e pobre. Amazônia lendária do tapuia que a civilização solapou, esmagou, deturpou com as impressões dos viajantes, que a civilização promete conquistar para o homem de amanhã. Amazônia rangelliana, infernal, grotesca, diabólica. Amazônia de Euclides revolta, desordenada, inquieta, surpreendida nos debates angustiosos de seu caos primitivo. Amazônia humanizada, compreendida, restaurada de Araújo Lima e Gilberto Osorio de Andrade. Amazônia que o Nordeste conquistou para o Brasil. Lândia demoníaca e teogénica, paradisíaca e infernal, jogando na violência milionária de seu cenário indecifrável, o enigma esquiliano de seu destino.
Amazônia que ninguém entende, que ninguém viu, que ninguém sabe! A Hileia é o grandioso tablado onde na violência de suas contorções cósmicas debate-se a mais impressionante e impossível das civilizações. Luta o homem sozinho no seu desassombro bandeirístico, três vezes heroico, convulsionando-se nas suas febres e nos seus sonhos, na miragem de suas esperanças e no desassossego de sua luta eterna. Batalha a selva, esgalhada e ambiciosa, imperando sobre a terra ensopada, debulhada em prantos, com ciúmes de esposa apaixonada de Sol. La se vai o rio também afogando a terra, retorcendo a margem, roendo barranco na enchente grávida de suas águas sonâmbulas. Água por todos os cantos e por todos os lados. Água de igapó, de lago, de chuva, de igarapé esbordoando a mata sombria e orgulhosa. E a diluvilândia lutando contra a água, maldizendo a terra, imprecando o sol. Terra de dor, terra de martírio, terra de angustia! Poema de minha terra triste feito de amargura. Poema que não se escreve, que se não compõe, que se não publica. Porque terá que ser escrito com a alma dos aventureiros, com o sangue dos seringueiros, com a dolência penosa e aflitiva do caboclo e amassado com o pão de todas as desventuras, de todos os fracassos, de todas as mortes. Poema de minha terra triste que ninguém escreveu! Poema-vida. (...)
Para
Gilberto Osório: “é a floresta que parece rir deste pavor. Diverte-se em
sugerir veredas impossíveis, miragens perversas, roteiros de vielas, labirintos
escusos, tremedais de penumbra, vórtices de lama. E lança contra nós a carga dos
seus tropeis de espectros, a muralha dos cipoais bravios, a falange eriçada dos
seus espinhos, toda a coorte de alucinações, de seus fantasmas, de seus
assombramentos”.
Essa a Amazônia
que todos descrevem e pintam com as multicores tintas de suas imaginações,
fixando um momento psicológico todo pessoal do escritor. Há, no entanto, uma
outra Amazônia, anônima, sacrificada, desconhecida. A Amazônia do seringueiro,
batedor de selva, devorador de léguas, angustiado pelas muralhas
sino-silvestres: do caboclo inerte que Araújo Lima reabilitou. Amazônia que vai
surgindo, tocada pelo sopro renovador que invade a alma nacional. Amazônia
humilde, rolando nos barrancos e nas corredeiras, vivendo nos tapiris e tejupares
da hinterlândia palafitando as águas audaciosas escarnecedoras, da miséria humana
pendurada nos braços marginais dos rios e paranás da Hileia.
Amazônia
que já se entende, que já se vê, que já se sabe!
II - MARCHA PARA A AMAZÔNIA
A
arrancada bandeirante do planalto paulista, varando o sertão no batismo da
nacionalidade, marcou para o Brasil a consciência de seu destino. Destino de
grandeza e de amplidão, levado pela vocação rebelionaria de conquistar mais
Brasil para o Brasil. Bem dentro, nas moradas andinas, lá estava a serra das Ibiturunas
de onde partiu a Voz de Oeste que clamava a posse da terra apaixonada de
Brasil. Apelo distante que nos deu este Brasil são, imenso, milionário de
grandezas e eterno de esplendor. Apelo que tem sido a nossa constante
preocupação durante os quatro séculos de nossa história. Diz muito bem Cassiano
Ricardo no seu estudo épico-social das bandeiras “que há um bandeirante anônimo
caminhando no sangue de cada um de nós”. E foi Getúlio Vargas quem traçando o
destino do Brasil reencetou a Marcha para o Oeste no verdadeiro sentido de
brasilidade. “O ritmo da civilização brasileira tem que ser esse”, caminhar
para o Oeste reencontrando Brasil naqueles brasis.
Naqueles tempos
a Amazônia era uma terra ignota, inexpugnável, indomável. Desafiava o luso que
se jactava de dominador dos mares, reptava o espanhol romântico e aventureiro. E
o castelhano desceu o Rio das Amazonas com Orellana e o português subiu a
correnteza com os braços e os remos da indiada na aventura de Pedro Teixeira. O
primeiro capítulo da conquista da terra estava escrito. Mas anos depois quem
passasse por aquelas paragens talvez visse uma humanidade despedaçada pela violência
das eras cíclicas, indigna para a vida das grandes paradas. O caboclo
absorvido, dissolvido, massado na selva. O índio varador das matas e dos igapós
errando numa vida sem destino. Mas, lá no alto da serra das Ibiturunas começou
a clamar a Voz do Oeste. Apelo de uma árvore que profetizava a grandeza amazônica.
Com nos dias do deslocamento das bandeiras do altiplano paulista para o sertão brasílico
rebrilhava as esmeraldas milagrosas e o ouro resplandecentes do El Dorado. As bandeiras
estavam em caminho da Amazônia levando toda a angústia e a ansiedade de uma
raça em expansão. Era o próprio Brasil que se descobria a si mesmo. (...)
Começava a
Marcha para a Amazônia.
III - A CONQUISTA DO OESTE
O deslocamento social do grupo nordestino se
processou sob o imperativo de duas causas: uma, o clima expulsando o homem, a
seca enxotando-o como que mandando dar o fora nas populações caatinguenses;
outra, a borracha, magnífico exemplo de um “foco de apelo” atraindo as levas as
regiões inóspitas, prometendo-lhe mundos e fundos sob a aparente e ilusória promessa
de enriquecimento. De um lado a repulsão, a transposição dos horizontes natais,
de outro a atração, a Voz do Oeste chamando para a conquista da fortuna. Sem a
primeira não teria havido a segunda. As duas forças se afinizando, confabulando
contra o homem. Este, desorientado, tonto de sono, vai jogar a grande partida
com o desconhecido.
Duas paisagens
antagônicas enfrentando o homem: Na caatinga, o sertanejo acostumado à ingratidão
da terra madrasta e infeliz, condenado ao suplício do fogo torturando com seus
raios de sol a envergadura inquebrantável do enjeitado. Na Hileia, o
desconhecido e bárbaro habitat selva-imperial, e o homem afogado de surpresas
pela desambientação, apatetado pela disparidade e pelo antagonismo das forças
em jogo. Na caatinga o homem imprensado entre a terra e o sol, na Hileia entre
a mata e o rio. Aqui o dualismo paradoxal da terra movediça e anfíbia se
enroscando como uma serpente que o abraçasse lançando seu bote traiçoeiro e inesperado.
Ali a adustão das terras chamuscadas de sol, desamparadas das chuvas. Seria de
esperar nesse deslocamento abrupto uma profunda desambientação psíquica agindo
sobre as acamadas sociais e biológicas. Mas o que se verificou, em verdade,
foram as relações e trocas de hábitos e costumes, filtrando o complexo cultural
de um grupo com o do outro, eliminando as superfluidades, desbastando o secundário,
polindo as deficiências de uns com a abundância de outros. Um grupo não se
transporta sem levar consigo a bagagem da tradição e das reminiscências. Por isso,
o cearense, o paraibano, o riograndense, o pernambucano, numa palavra – os nordestinos,
empolgaram a Amazônia, dominaram-na destrinchando-a com sua machadinha e o seu
terçado. (...)
Aliou-se a ela e quem o ver, ainda hoje, nota na cor de sua pele pálida o verde de seu impaludismo adquirido por solidariedade no sofrimento e na resignação de sua máscara desconsolada e aflita. As suas células, moqueadas de sol, se coloriram verdificamente com a clorofila opilante do martírio verde. Clorofila no sangue – impaludismo. Clorofila na alma – a infinita tristeza da Amazônia. Clorofila na vida. Seringueira. Borracha. Filhos do sofrimento e da angústia. Fotossíntese de uma época assimilando o brilho efêmero do ouro negro. O nordestino trazia consigo a sua paisagem que teria de ser absorvida, amazonizada, a memória do sertão que teria de ser deliquescida e enxugada. Foi nesse sentido que se processou a amazonização do “brabo” enquanto numa réplica admirável se dava a nordestinização de nossa paisagem. (...)
A Amazônia então apossou-se do Nordeste enquanto este a conquistava para o Brasil. (segue)
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