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sexta-feira, fevereiro 14, 2025

ROTEIROS DA AMAZÔNIA - SAMUEL BENCHIMOL (1)

Há 25 anos, deparei-me com o texto Roteiros da Amazônia, ao pesquisar na Fundação Joaquim Nabuco, em Recife. O folheto não identificava o autor, apenas local e data. Somente dias desses fui apresentado ao artífice: Samuel Isaac Benchimol, saudoso professor emérito da Faculdade de Direito do Amazonas (FDA), onde obteve o bacharelado na turma de 1945. Em consulta à bibliografia de Benchimol pude sanear a questão: constitui em sua primeira obra, desse modo patenteada no rodapé do folheto:

Conferência pronunciada a 21-11-1941 na Faculdade de Direito do Recife, na recepção feita pelo Diretório Acadêmico a uma entusiástica embaixada de estudantes amazonenses.

Então, se o eminente Mestre concluiu o curso de Direito em 1945, quatro anos antes, Benchimol era apenas um estudante; e a comitiva me parece ter sido de alunos da FDA. Selecionei trechos da conferência, e ainda assim vou postar em duas etapas, transcrevendo-a na ortografia vigente.


 
I - HILEIA

Imersa na selva, bárbara e ateia, banhada nas águas lustrais do Genesis milenário, ergue-se a Amazônia. Amazônia que se vive todos os dias na tortura melancólica de sua paisagem, nos tapiris perdidos dos barrancos, na pescaria alegre e festiva de seus lagos, titanizados nas aventuras heroicas de suas gestas selvagens, nas epopeias pagãs de sua gente humilde e pobre. Amazônia lendária do tapuia que a civilização solapou, esmagou, deturpou com as impressões dos viajantes, que a civilização promete conquistar para o homem de amanhã. Amazônia rangelliana, infernal, grotesca, diabólica. Amazônia de Euclides revolta, desordenada, inquieta, surpreendida nos debates angustiosos de seu caos primitivo. Amazônia humanizada, compreendida, restaurada de Araújo Lima e Gilberto Osorio de Andrade. Amazônia que o Nordeste conquistou para o Brasil. Lândia demoníaca e teogénica, paradisíaca e infernal, jogando na violência milionária de seu cenário indecifrável, o enigma esquiliano de seu destino.

Amazônia que ninguém entende, que ninguém viu, que ninguém sabe! A Hileia é o grandioso tablado onde na violência de suas contorções cósmicas debate-se a mais impressionante e impossível das civilizações. Luta o homem sozinho no seu desassombro bandeirístico, três vezes heroico, convulsionando-se nas suas febres e nos seus sonhos, na miragem de suas esperanças e no desassossego de sua luta eterna. Batalha a selva, esgalhada e ambiciosa, imperando sobre a terra ensopada, debulhada em prantos, com ciúmes de esposa apaixonada de Sol. La se vai o rio também afogando a terra, retorcendo a margem, roendo barranco na enchente grávida de suas águas sonâmbulas. Água por todos os cantos e por todos os lados. Água de igapó, de lago, de chuva, de igarapé esbordoando a mata sombria e orgulhosa. E a diluvilândia lutando contra a água, maldizendo a terra, imprecando o sol. Terra de dor, terra de martírio, terra de angustia! Poema de minha terra triste feito de amargura. Poema que não se escreve, que se não compõe, que se não publica. Porque terá que ser escrito com a alma dos aventureiros, com o sangue dos seringueiros, com a dolência penosa e aflitiva do caboclo e amassado com o pão de todas as desventuras, de todos os fracassos, de todas as mortes. Poema de minha terra triste que ninguém escreveu! Poema-vida. (...)

Para Gilberto Osório: “é a floresta que parece rir deste pavor. Diverte-se em sugerir veredas impossíveis, miragens perversas, roteiros de vielas, labirintos escusos, tremedais de penumbra, vórtices de lama. E lança contra nós a carga dos seus tropeis de espectros, a muralha dos cipoais bravios, a falange eriçada dos seus espinhos, toda a coorte de alucinações, de seus fantasmas, de seus assombramentos”.

Essa a Amazônia que todos descrevem e pintam com as multicores tintas de suas imaginações, fixando um momento psicológico todo pessoal do escritor. Há, no entanto, uma outra Amazônia, anônima, sacrificada, desconhecida. A Amazônia do seringueiro, batedor de selva, devorador de léguas, angustiado pelas muralhas sino-silvestres: do caboclo inerte que Araújo Lima reabilitou. Amazônia que vai surgindo, tocada pelo sopro renovador que invade a alma nacional. Amazônia humilde, rolando nos barrancos e nas corredeiras, vivendo nos tapiris e tejupares da hinterlândia palafitando as águas audaciosas escarnecedoras, da miséria humana pendurada nos braços marginais dos rios e paranás da Hileia.

Amazônia que já se entende, que já se vê, que já se sabe!

II - MARCHA PARA A AMAZÔNIA

A arrancada bandeirante do planalto paulista, varando o sertão no batismo da nacionalidade, marcou para o Brasil a consciência de seu destino. Destino de grandeza e de amplidão, levado pela vocação rebelionaria de conquistar mais Brasil para o Brasil. Bem dentro, nas moradas andinas, lá estava a serra das Ibiturunas de onde partiu a Voz de Oeste que clamava a posse da terra apaixonada de Brasil. Apelo distante que nos deu este Brasil são, imenso, milionário de grandezas e eterno de esplendor. Apelo que tem sido a nossa constante preocupação durante os quatro séculos de nossa história. Diz muito bem Cassiano Ricardo no seu estudo épico-social das bandeiras “que há um bandeirante anônimo caminhando no sangue de cada um de nós”. E foi Getúlio Vargas quem traçando o destino do Brasil reencetou a Marcha para o Oeste no verdadeiro sentido de brasilidade. “O ritmo da civilização brasileira tem que ser esse”, caminhar para o Oeste reencontrando Brasil naqueles brasis.

Naqueles tempos a Amazônia era uma terra ignota, inexpugnável, indomável. Desafiava o luso que se jactava de dominador dos mares, reptava o espanhol romântico e aventureiro. E o castelhano desceu o Rio das Amazonas com Orellana e o português subiu a correnteza com os braços e os remos da indiada na aventura de Pedro Teixeira. O primeiro capítulo da conquista da terra estava escrito. Mas anos depois quem passasse por aquelas paragens talvez visse uma humanidade despedaçada pela violência das eras cíclicas, indigna para a vida das grandes paradas. O caboclo absorvido, dissolvido, massado na selva. O índio varador das matas e dos igapós errando numa vida sem destino. Mas, lá no alto da serra das Ibiturunas começou a clamar a Voz do Oeste. Apelo de uma árvore que profetizava a grandeza amazônica. Com nos dias do deslocamento das bandeiras do altiplano paulista para o sertão brasílico rebrilhava as esmeraldas milagrosas e o ouro resplandecentes do El Dorado. As bandeiras estavam em caminho da Amazônia levando toda a angústia e a ansiedade de uma raça em expansão. Era o próprio Brasil que se descobria a si mesmo. (...)

Começava a Marcha para a Amazônia.

III - A CONQUISTA DO OESTE

 O deslocamento social do grupo nordestino se processou sob o imperativo de duas causas: uma, o clima expulsando o homem, a seca enxotando-o como que mandando dar o fora nas populações caatinguenses; outra, a borracha, magnífico exemplo de um “foco de apelo” atraindo as levas as regiões inóspitas, prometendo-lhe mundos e fundos sob a aparente e ilusória promessa de enriquecimento. De um lado a repulsão, a transposição dos horizontes natais, de outro a atração, a Voz do Oeste chamando para a conquista da fortuna. Sem a primeira não teria havido a segunda. As duas forças se afinizando, confabulando contra o homem. Este, desorientado, tonto de sono, vai jogar a grande partida com o desconhecido.

Duas paisagens antagônicas enfrentando o homem: Na caatinga, o sertanejo acostumado à ingratidão da terra madrasta e infeliz, condenado ao suplício do fogo torturando com seus raios de sol a envergadura inquebrantável do enjeitado. Na Hileia, o desconhecido e bárbaro habitat selva-imperial, e o homem afogado de surpresas pela desambientação, apatetado pela disparidade e pelo antagonismo das forças em jogo. Na caatinga o homem imprensado entre a terra e o sol, na Hileia entre a mata e o rio. Aqui o dualismo paradoxal da terra movediça e anfíbia se enroscando como uma serpente que o abraçasse lançando seu bote traiçoeiro e inesperado. Ali a adustão das terras chamuscadas de sol, desamparadas das chuvas. Seria de esperar nesse deslocamento abrupto uma profunda desambientação psíquica agindo sobre as acamadas sociais e biológicas. Mas o que se verificou, em verdade, foram as relações e trocas de hábitos e costumes, filtrando o complexo cultural de um grupo com o do outro, eliminando as superfluidades, desbastando o secundário, polindo as deficiências de uns com a abundância de outros. Um grupo não se transporta sem levar consigo a bagagem da tradição e das reminiscências. Por isso, o cearense, o paraibano, o riograndense, o pernambucano, numa palavra – os nordestinos, empolgaram a Amazônia, dominaram-na destrinchando-a com sua machadinha e o seu terçado. (...)

Aliou-se a ela e quem o ver, ainda hoje, nota na cor de sua pele pálida o verde de seu impaludismo adquirido por solidariedade no sofrimento e na resignação de sua máscara desconsolada e aflita. As suas células, moqueadas de sol, se coloriram verdificamente com a clorofila opilante do martírio verde. Clorofila no sangue – impaludismo. Clorofila na alma – a infinita tristeza da Amazônia. Clorofila na vida. Seringueira. Borracha. Filhos do sofrimento e da angústia. Fotossíntese de uma época assimilando o brilho efêmero do ouro negro. O nordestino trazia consigo a sua paisagem que teria de ser absorvida, amazonizada, a memória do sertão que teria de ser deliquescida e enxugada. Foi nesse sentido que se processou a amazonização do “brabo” enquanto numa réplica admirável se dava a nordestinização de nossa paisagem. (...)

A Amazônia então apossou-se do Nordeste enquanto este a conquistava para o Brasil. (segue)

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