Do padre Nonato Pinheiro, que vai completar vinte anos de
falecido em dezembro próximo, recolhi do
Suplemento Literário Amazonas (nº 2, dez.. 1986) este trabalho sobre Nunes Pereira. Foram dois imortais de
nossa Academia Amazonense de Letras.
É conhecida a secura
ou aridez dos cientistas na composição de suas obras, posição até certo ponto
compreensível e legítima, já que a ciência é, de sua natureza, austera e
objetiva, dispensando os recamos e as louçanias da literatura, da eloquência e
das artes, em geral. A literatura é a arte literária, e o artista preocupa-se
com o sentido e a plenitude da beleza. Dele diremos o que disse lindamente a
Escritura Santa daqueles Varões Insignes, que viveram com a volúpia da beleza: Pulchritudinis studium habentes! (Livro
do Eclesiástico).
O homem de letras, a não ser que se trate de um
borra-tintas ou um tamanqueiro, esmera-se em suas produções, chegando alguns ao
requinte (que não exige) de transformarem suas páginas em obras de arte,
esculturas marmóreas, vasos alabastrinos, cromos, cinzeladuras, vitrais,
cornucópias e arranjos de rosas, acanto e louro!
O mundo da ciência não conhece ornatos e arabescos, nem se
engalana de púrpuras e damascos, mas investiga com frieza a fosforescência do vagalume
e a fissura do átomo!
A verdade nua e limpa é que Nunes Pereira, antes de ser o
cientista qualificado nos domínios da antropologia cultural, da flora, fauna,
potamografia, limnologia, climatologia, bromatologia e mitologia da Amazônia,
já se notabilizara como primoroso homem de letras, inspirado poeta simbolista,
que muito de indústria escolheu para seu patrono na Academia Amazonense de
Letras, da qual foi um dos fundadores, o autor incomparável dos Faróis e dos
Broquéis, o glorioso negro de imaginação de ouro, Cruz e Sousa!
Devo à minha pachorra e
volúpia no trato da pesquisa o conhecimento que tenho da obra literária de
Nunes Pereira. Passei muitas horas nos porões do Instituto Geográfico e
Histórico do Amazonas, do qual sou membro efetivo e benemérito, a consultar as
coleções dos antigos jornais de Manaus. Encontrei sonetos lapidares do autor de
Moronguetá e de Panorama da Alimentação Indígena, poemas verdadeiramente antológicos, de sonoridade
verlainiana!
Os caminhos da vida ou a própria
imposição da sobrevivência deram-lhe outra orientação intelectual, com
incursões pela ciência. Como quer que seja, quem o ler, mesmo de inopino, logo
percebe o cientista lírico, cuja
formação literária suaviza e aveluda suas elucubrações científicas! Enganam-se
pois, os que supuserem que o cientista asfixiou e extinguiu o primoroso homem
de letras, como na imagem do apuizeiro das florestas amazônicas, estrangulador
de espécies vegetais...
A obra literária de Nunes Pereira pede meças à obra científica, só que a primeira
azula nos longes de sua mocidade, mas persiste, árdega e garrida, nos jornais e
revistas do passado, na Revista da Academia Amazonense de Letras e nas conferências
literárias que proferiu, assim no Amazonas como alhures. Recordo-me de uma
palestra magistral que pronunciou na sede de nossa Acrópole literária sobre as
grandes figuras que a enramaram de louros e mirtos. Ao império de sua admirável
evocação, aqueles vultos olímpicos ressuscitaram, retornando redivivos ao
recinto azul da academia, revestidos de clâmides refulgurantes, sob os olhares
atônitos do presidente Péricles Moraes e de seus confrades, cabendo-me a honra e o júbilo de encontrar-me entre eles!
Nunes Pereira correspondia-se com o famoso antropólogo
Claude-Lévi Strauss, o celebrado mestre de Triste-
Tropiques; La Pensée Sauvage; Le
cru et le cuit e Du miel aux cendres,
que o tinha no mais alto conceito científico. Revistas especializadas em antropologia
cultural e tribos indígenas brasileiras disputavam a publicação de seus
trabalhos, tal o recorte científico que os distinguia!
E que dizer do boêmio?! Sua vida boêmia não o
impediu de atingir a mais provecta senectude, acentuadamente luminosa,
conservando até ao ocaso de sua longa existência, referto de ouro e matizes
policromos, como o crepúsculo do sol, a força extraordinária de sua portentosa
mentalidade! E suas rodas escocesas eram verdadeiros triclínios de letras e
saraus de cultura, sempre cercado de intelectuais!
Eu sugiro a meus ilustres Pares da
Academia que a cadeira que o grande maranhense ocupou, passe a crismar-se com o
nome de NUNES PEREIRA, e que seja dado o seu nome, pela Prefeitura Municipal, a
uma rua ou logradouro público de nossa capital, pelo muito que o nosso Amazonas
lhe ficou a dever, assim nas ciências como nas letras!
Parodiando um lúcido espírito francês,
proclamo, entoando a antífona de minha admiração fervorosa, após incensar com
redolências seu túmulo em flor:
“Uma águia gigante sobrevoou nosso
espaço...”
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