Volto a explorar o livro do falecido mestre e jurista Waldir
Garcia, que nos legou uma coletânea de histórias de sua cidade natal – Silves. Esta, transcrita abaixo,
envolve um conhecido vigário da paróquia de Nossa Senhora da Conceição local. Padre
Daniel Oliveira, além da atuação religiosa, exerceu o mandato de deputado
provincial e outro mister não muito digno, segundo as palavras do saudoso silvense.
CHICO PADRE
Waldir Garcia
Igreja de Silves |
A igreja de Nossa Senhora da Conceição, padroeira de
Silves, guarda em seu corpo os restos mortais do Padre Daniel Marques d'Oliveira,
pároco daquela cidade e que foi deputado estadual no Amazonas, em cuja
atividade legislativa, segundo pesquisa publicada pelo inefável escritor
Genesino Braga, foi autor da lei que concedeu os primeiros recursos financeiros
para a construção da igreja de São Sebastião, desta Capital.
Acontece que o Padre Daniel não fora um sacerdote casto,
até certo tempo, como foi o Padre Antonio de Morais, figura central do romance O Missionário, de Inglez de Sousa, o qual,
afinal, apaixonara-se por Clarinha, vindo, finalmente, a fazer amor com ela "sobre o tapete de folhas úmidas do orvalho, douradas pelo
sol", num cacaueiro aí na velha Mundurucânia. Ao contrário dele, Padre
Daniel parecia-se
com o Padre José, que antecedera ao Padre Antonio de Morais, na mesma paróquia de Silves e que, segundo ainda Inglez de Sousa, “era um pândego que passava meses nos lagos, tocando violão e namorando as mulatas e as caboclas dos arredores...”
com o Padre José, que antecedera ao Padre Antonio de Morais, na mesma paróquia de Silves e que, segundo ainda Inglez de Sousa, “era um pândego que passava meses nos lagos, tocando violão e namorando as mulatas e as caboclas dos arredores...”
Em que pese o grandioso trabalho missionário desempenhado
por Padre Daniel à comunidade silvense, o certo é que prevaricou no cumprimento dos deveres
sacerdotais, no que tange ao celibato e à castidade, por isso que deixou alguns filhos havidos com as caboclas
saracaenses, dentre eles, Francisco Ferreira Neves, mais conhecido por Chico
Padre, sobre quem iremos transmitir algumas estórias que, à moda folclórica, correm de boca em boca.
Chico Padre era comerciante, estabelecido no lugar
denominado Conceição, situado num igarapé à margem direita do rio Urubu, atrás da cidade de Silves. Costumava regatear
em todo o município, praticando o escambo, forma primitiva do comércio local:
comprava castanha, pirarucu, couros e peles, madeiras, farinha, balatas, óleo
de copaíba e de andiroba, breu, cacau, enfim, os produtos agrícolas ou os
extraídos das matas, e os trocava por fazendas, cachaça, sabão, café, arroz, açúcar,
querosene etc...
Gostava que exaltassem suas aventuras amorosas, e isso muito
o envaidecia e o tornava dócil e acessível mesmo aos fregueses mais recalcitrantes
no pagamento de suas dívidas.
Havia em Silves, residente no bairro de Mucajatuba, um dos
tipos mais estúrdios que ali pontificara: Angélico Neves, que atendia pelo apelido
de Poronga. Inteligente, sagadíssimo, cordial e afável, sabendo que Chico Padre
gostava que gabassem suas aventuras amorosas, aproveitava-se da fraqueza do comerciante
para conquistar-lhe a simpatia, embora seu nome constasse da lista negra de Chico
Padre, porque mau pagador.
A freguesia começava a contar estórias e a bebericar. No
meio do regatão, sobre um banco largo de itaúba, um garrafão de cachaça estava
disponível para atender aos fregueses em sua sede etílica.
Onze horas da manhã desponta, ao longe, uma canoa com um
só tripulante, que se aproxima do regatão. Pelo tipo de remada cadenciada, Tapiú identificou o tripulante, dizendo: "Seu Chico, lá vem o Poronga!" Chico
Padre contrariou-se e disse logo: "Seu Tapiú, esse miserável
não leva um tostão fiado! Veja bem, não se vende fiado ao Poronga! Ele não paga
as contas, é um refinado caloteiro!"...
Aproxima-se a montaria. Era mesmo o Poronga, que amarra a
canoa ao regatão e saúda os presentes: "Bom dia a todos!", a que os presentes respondem com alegria e um sorriso
sarcástico nos lábios. Dirige-se ao Chico Padre e o saúda assim: "Bom dia,
seu Padre!", a que Chico Padre
responde com a cara fechada de mau humor: "Bom dia, seu Poronga!"
Poronga não se perturba. Puxa do bolso da calça uma moeda
de um cruzado – que àquela época valia quatrocentos réis – e pede: "Seu Tapiú, dê-me duzentos réis de
cachaça, um mata-bicho bem dosado!" Tapiú o atende prontamente, Poronga, num gesto de elegância, oferece aos presentes, que agradecem, e gentilmente
vira-se para Chico Padre e lhe oferece a pinga também, e tem resposta negativa de aceitação.
Depois de ingerir
a bebida de um só trago, Poronga dá uma cuspalhada para dentro d'água, conserta
a garganta e virando-se para o Chico Padre, que continuava a embalar-se na rede, e diz: "Ah! meus amigos, se aquela rede falasse certamente
contaria as grandes aventuras amorosas do Padre. Quantas caboclas ele já amassado
no fundo dessa rede ou sobre as tábuas do soalho! A fama do Padre vai longe, minha
gente! Dizem que no paraná de Boa Esperança, na costa do Rebojão, na costa do
Cucuiari e no paraná do Pai Tomás, em cada um desses lugares ele tem duas ou
três fêmeas à espera dele. Basta o regatão dele buzinar, que elas já vêm para o
barranco, esperá-lo! É um felizardo! É o homem que tem mais cutubas nestas paragens!"...
Chico diz: "Deixa disso, Poronga, sabes que não sou
tão marupiara para as garotas, não é?” Poronga continua: "É, pessoal, a continuar assim, daqui a
alguns anos, em cada um desses pontos referidos vão construir uma capelinha para
abrigar os filhos do Chico Padre!” Os fregueses riam a valer, enquanto Chico Padre
ficava cada vez mais vaidoso e regozijado com os elogios que Poronga fazia de
sua macheza.
Poronga pede mais duzentos réis de cachaça e Tapiú o
serve. Ele oferece a Chico Padre, que aceita e bebe toda a tiquira. Chico Padre
passa a contar, ele mesmo, as suas aventuras de amor e, dar a momentos, é o próprio Chico Padre quem oferece a bebida a
Poronga. Bebem à farta, e lá pelas quatro da tarde, Chico Padre já está meio bêbado, eufórico,
palrador, coração mole, do que se aproveita Poronga para dar o golpe fatal, dizendo:
"Seu Padre, quero fazer um
ranchinho para a família, posso?" Chico Padre ordena: "Seu Tapiú, atende o Poronga no que ele quiser!"
Poronga faz a lista das mercadorias de que precisa:
sabão, cachaça, arroz, querosene, tabaco, papelinho zig-zag, tauari, isqueiro de rabo, anzóis ingleses, linha para
arpoeira, dois pares de tamanco, duas redes, uma saca de sal, um alqueire de farinha. Coloca tudo
na Cornicha, sua canoa, e cobre a
mercadoria com um japá.
Poronga bebe mais alguns goles e se despede dos presentes,
especialmente de Chico Padre: "Bem, seu Padre, até o próximo domingo. Deus o proteja, conserve e
guarde!" Chico Padre diz: "Amém!", e já embriagado, volta à rede a delirar, vivendo as emoções
amorosas postas em destaque por
Poronga e fazendo planos para novas aventuras, enquanto Poronga, distanciando-se
do regatão, deixa mais um fiado a fundo perdido, no alegre regatão do Chico Padre.
Que bacana, ler esta narrativa, como descendente de silvenses, que sou. Até porque já tinha conhecimento da existência de Chico Padre, na narrativa que meu avô fez da sua infância em Silves. Melhor ainda por saber que Chico Padre era parente nosso, pois descendo dos Ferreira Neves.
ResponderExcluirMuito bom ler esta narrativa, pois já ouvi falar de Chico Padre na descrição que meu avô fez, da sua infância em Silves. Só não sabia que ele era parente nosso, da família Ferreira Neves.
ResponderExcluirMuito bem e saber que tem parentes que fez parte da história da cidade de Silves, grato por isso!!
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