Recorte de A Crítica, 1967 |
O encontro do documento abaixo trouxe-me à
lembrança esse artista, que conheço apenas pelos causos contados a seu respeito. Sim, também conheço alguns de seus
quadros e alguns poemas esparsos. Todavia sei do trabalho que o Restauro do
Palacete Provincial vem operando nas suas telas ali recolhidas.
Hoje, completam-se 36 anos do “encantamento” de
Afrânio de Castro, repetindo o termo usado por outro “encantado”, Arthur
Engrácio, autor do texto aqui copiado. O lembrete sobre o amigo foi postado no Jornal do Commercio (19 de setembro de
1982).
Afrânio nasceu em Janauacá (AM), em 1931, e morreu,
portanto, alguns dias após festejar os 50 anos. Ocupou a Cadeira 5 do Instituto
Geográfico e Histórico do Amazonas, patronada por Alexandre von Humbolt.
CRÔNICA PARA AFRÂNIO
NO SEU 1° ANO DE ENCANTAMENTO
Arthur Engrácio
Amanhã, dia 20 de
setembro, estará fazendo um ano que Afrânio Castro se encantou. Digo se
encantou, para acompanhar Guimarães Rosa na sua filosofia, que dizia que as
pessoas não morrem, se encantam. E eu acredito que assim aconteça, pois, não
seria devido a esse encantamento que a imagem de Afrânio continua mais viva e
marcante na nossa memória?
A imortalidade, a meu ver,
é uma espécie de encantamento. Os que se imortalizam, não chegam também a
conhecer a morte, na acepção subjetiva do termo, mas se transfiguram em outro
ser, em outra entidade, como acertadamente queria o grande romancista.
La Rochefoucauld, citado
por Tristão de Ataide, dizia que a morte para os escritores, é como a ausência
para o amor. A ausência aumenta o verdadeiro amor, mas elimina os caprichos,
como o vento atiça os incêndios e apaga as velas. Os escritores medíocres —
acrescenta, por sua vez, o pensador brasileiro — morrem com a morte, qualquer
que tenha sido o seu êxito em vida.
Os autênticos se
imortalizam com ela. O conceito expedido pelos dois ilustres homens de letras,
falando de escritores, pode ser estendido a todos os artistas, de modo geral,
com a particularidade de, no caso, Afrânio Castro achar-se já incluído nessa
categoria, pois que era também poeta. Em verdade, o nosso pintor maior tem o
seu lugar assegurado na posteridade como o talento artístico mais puro e
autêntico já surgido no Amazonas em todos os tempos.
Rebelde e impetuoso, seu
comportamento como artista foi um desafio constante à vida, de cujos maus
tratos ele se vingava com um desprezo mortal. Não tinha fisicamente nenhum
atrativo, mas poucos como Afrânio souberam cultivar a beleza com tamanho
devotamento e amor. Suas telas provam isto. De concepção profundamente
realística, possui ele, não obstante um alto grau, o sentido poético, que fazia
transparecer em sua obra, toda ela marcada aqui e ali daquele tom de vagueza e
subjetivismo e que é mesmo a poesia em si.
Afrânio nasceu no
município de Janauacá e a sua infância, como de quase toda criança do interior,
decorreu pobre e humilde. Passou-a nesse clima de despreocupação e
irresponsabilidade próprias dessa fase da vida — nadando, remando, pescando,
armando arapucas para os passarinhos incautos, enrijecendo, em suma, os
músculos e fortificando os pulmões com o ar sadio que o contato direto com a
natureza oferece.
Aprendeu a ler com
dificuldade, mas daí em diante se tornaria um incorrigível devorador de livros,
lendo tudo o que lhe caía às mãos, como ciência, literatura, folclore, arte e,
especialmente, as biografias dos grandes mestres da pintura: Leonardo da Vinci,
Miguel Ângelo, Rembrandt, Renoir, Guaguin, Toulousse Lautrec e, em particular,
Van Gogh, artista com o qual Afrânio, pessoalmente, mostrava possuir muita
afinidade.
Sem o espírito comercial
de que são dotados alguns dos seus colegas, Afrânio Castro não enriqueceu nem
sequer chegou a colocar qualquer dinheiro na poupança. Deixou, todavia, uma
obra expressiva, respeitável, da mais alta significação e valor. Realizou
exposições em quase todos os Estados do Brasil, inclusive Rio de Janeiro, São
Paulo, Natal e Brasília, Belém etc.
Há trabalhos seus
espalhados pelo país à fora, como também no exterior, notadamente na
Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, para onde foram levados por
professores daquele centro de passagem por aqui. Em Manaus suas mostras de
pintura sempre alcançaram grande sucesso, tanto de crítica como de vendagem, o
que bem atesta a grande popularidade e o alto mérito que possuía o artista.
Em arte, ele tinha um
lema: "Nada permanece bom enquanto não se procura tornar melhor". De
fato, era um insatisfeito com a sua própria obra, um inconformado, um angustiado.
Cada trabalho seu era um avanço que fazia na técnica; em cada nova tela sua
podia perceber-se claramente aquela preocupação, aquela ânsia de perfeição que
atormenta todo artista consciente do seu papel.
Temperamental por
excelência, Afrânio chegava às vezes a ter tiradas que poderíamos chamar
geniais. Dele, não sei se por conta ou não do anedotário que todo grande
artista cria em torno de si — como no caso de um Van Gogh, um Guaguin e, mais
recentemente, um Salvador Dali —, conta-se uma série de episódios mais ou menos
pitorescos, que bem revelam o caráter invulgar que possuía.
Certa feita bebia ele com
uns amigos, num bar localizado à rua Saldanha Marinho, quando, já bem calibrado, verificou que não tinha mais
dinheiro para continuar a rodada. Pensou um pouco e chegou à conclusão de que
só havia um jeito — era ir ter com o Josafá Pires, nos Associados, o qual lhe
devia uma importância cujo pagamento vinha ele protelando há algum tempo.
Pensou e já ia passar da
ideia à ação quando, neste justo momento, como que caído do céu, o conhecido
radialista — num terno de linho branco, impecavelmente engomado, sapatos e
meias também brancos — passava do outro lado da rua rumo ao bar do Carmona.
Note-se que Josafá já havia percebido o artista. Mas, talvez por ele encontrar-se
naquele "estado" ou não tencionar mesmo pagá-lo, resolveu passar ao
largo, de rota batida.
O pintor levantou-se,
chegou até à porta e gritou pelo amigo. Este, propositadamente, fez-se de surdo
e continuou no seu caminho. Afrânio deu outro grito. Imperturbavelmente, Josafá
se manteve no mesmo ritmo. Afrânio chamou de novo, e ainda dessa vez não obteve
resposta, pois o outro não o "ouvia" de jeito nenhum. Aí não se
conteve mais: pôs as mãos em concha na boca e gritou bem alto, a plenos
pulmões: "Josafá, ô Josafá! Todo de branco, hein? Mas com a alma NEGRA!!!”
Quem o via com aquele
físico enorme de viking, como ele próprio se arrogava, não supunha que dentro
dele se agasalhava uma alma de criança, de meninão. As caretas terríveis que
fazia, os berros tonitruantes que soltava, à semelhança de Tarzan, quando
bebia, não passavam de encenação. Quem não o conhecesse, nessas horas, talvez
saísse correndo assombrado. Mas, era estender-lhe a mão e pedir-lhe que se
acalmasse, e pronto! — o "monstro" desaparecia.
Dotado de uma inteligência
ágil e muito senso de humor, Afrânio alegrava qualquer ambiente onde se
encontrasse. Era um repentista da piada, que ele improvisava com muito espírito
e oportunidade, provocando nos circunstantes gostosas gargalhadas.
E que dizer dos epítetos
infames que criava? Arlindo Porto considerava-o o maior colocador de apelidos
que conhecera. Muitos desses apelidos, aplicados em seus colegas do Clube da
Madrugada, pegaram e hoje estão consagrados no mundo literário e artístico de Manaus.
Eis alguns deles: Pantera Cor de Rosa, Carapanã de Biafra, Gato Jaguatirica,
Bunda de Vaca, Patativa de Moscou, Camaleão Moralista, Gato Jujuba, Coronel
Farofa, Bezerrinho de Ouro, Caranguejeira de Pijama, Bunda de Sanfona
Gafanhoto, Lavadeira de Cacimba, Caboclo Caiapó, Anjão, Tartaruga Marciana,
Onça Grávida, Turculino e outros.
Passado um ano de ausência
entre nós, a figura de Afrânio em nada se alterou na nossa memória. Permanece
no nosso convívio, tomando parte dos nossos papai nas noites de boemia. Com os
olhos da alma continuo vendo-o, carrancudo, macrocéfalo, sempre irreverente e
desabusado a xingar Deus e o mundo:
— Lepra maldita! Resto de
civilização!...
Foi ele que morreu afogado na Ponta negra?
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